A maconha, droga preferida da geração paz e amor dos anos 60, manteve seu fã clube por mais três décadas embalada em boa parte pela crença de ser mais inofensiva do que o cigarro. Mas agora há indícios de que ela talvez não seja tão “santa” assim. Especialistas apontam que cresce o número de pessoas que procuram ajuda para deixar de fumar a Cannabis sativa, o nome científico da erva. No ano passado, o consultório do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, em São Paulo, por exemplo, registrou um aumento de aproximadamente 30% no atendimento a usuários arrependidos que não conseguem se divorciar da droga. A verificação da mesma tendência em ambulatórios para dependentes químicos e em outras clínicas motivou Laranjeira a inaugurar na Universidade Federal de São Paulo um serviço exclusivo para consumidores da Cannabis. “Muita gente quer parar de fumar e não sabe por onde começar”, garante.
 

Questão mais indigesta para a sociedade em outros tempos, hoje já se admite que o consumo da maconha não gera prejuízos morais ou danos pessoais e profissionais para aqueles que eventualmente fumam. Ou seja, para gente que em finais de semana acende um baseado apenas para sentir o relaxamento e outros prazeres proporcionados pela erva. O problema é que uma parcela de usuários desenvolve uma relação complexa com a maconha, encaixando-se nos conceitos mais recentes de dependência.
 

Atualmente, o critério mais aceito entre os especialistas para definir a dependência da maconha é a avaliação do impacto causado por ela no cotidiano da pessoa. A ausência de uma síndrome de abstinência parecida com a da cocaína e as dúvidas sobre a existência de tolerância (necessidade de fumar mais para sentir os mesmos efeitos) não são suficientes para afastar a hipótese de sujeição à Cannabis. Os sintomas causados pela privação da erva são mais brandos do que os da concorrência pesada: algumas dores musculares, variações de humor e sonolência (o excesso de sono é justamente uma das reclamações da assistente social Cristina – nome fictício –, que conta sua história nesta reportagem).

Dependência – Apesar disso, o perigo não está afastado. “Numa escala de dez pontos, a maconha tem potencial zero de dependência química e oito de psicológica”, afirma o psicólogo Eduardo Knopp Mello, do Recanto Maria Tereza, da Cruzada Bandeirante, em São Paulo. “Mas para tratamento não se deve separá-la em física ou psicológica. Importa é que ela precisa de atendimento especializado para ser vencida”, ressalta o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas (Grea), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Para agravar a situação, a droga tem ficado mais forte por causa das modernas técnicas aplicadas no seu cultivo. A consequência é que o efeito se intensifica. Portanto, quem sente vontade de fumar todos os dias e fica contrariado quando não consegue “dar um tapa” tem motivos para se preocupar.
A sensação de bem-estar provocada pela maconha em algumas pessoas acontece por ação do tetrahidrocanabiol (THC), o principal componente ativo presente na planta. A substância não é má de todo. Na forma de cápsulas manipuladas em laboratório, ela tem aplicação medicinal, ajudando a controlar os efeitos da quimioterapia, como vômito e náuseas. E um estudo recentemente publicado na revista Nature sugere que a droga pode ajudar a reduzir os sintomas da esclerose múltipla.
O tratamento contra a dependência psicológica não inclui medicamentos na maioria dos casos e costuma durar de seis meses a um ano, com uma ou mais sessões semanais de psicoterapia. Recorre-se geralmente às técnicas da terapia comportamental ou cognitiva. “Ela focaliza o problema, sem discutir, por exemplo, aspectos da infância”, explica o psiquiatra Laranjeira. Os especialistas procuram motivar a mudança de atitude a partir da discussão dos prós e contras do convívio com a droga, a definição de estratégias para situações de risco e recuperação do prazer em outras atividades. “A droga começa a ocupar cada vez mais espaço na vida dos usuários, tirando a importância de atividades como o lazer e o trabalho e também a preocupação com a saúde”, esclarece o psiquiatra Sérgio Nicastri, do Grea. É um diagnóstico sob medida para o contador João Martins, 28 anos, que durante dez anos incorporou a Cannabis em sua rotina diária. “Abandonei a faculdade de música para ficar em casa fumando”, lembra. Há quatro meses longe da maconha, ele toma antidepressivos. “Diversas pessoas usam a droga para aliviar a ansiedade ou sintomas de uma depressão não diagnosticada, que só piora com consumo constante da maconha”, diz Nicastri.
 

Outra preocupação dos especialistas está na diminuição da faixa etária dos consumidores. Nos anos 70, a média era apertar o primeiro baseado por volta dos 14 anos. Hoje, a garotada está se iniciando entre 10 e 11 anos. Calcula-se que cerca de 15% dos estudantes brasileiros do ensino fundamental e médio já deram pelo menos uma tragada, conforme estudo feito em 1997 pelo Cebrid, da Universidade Federal de São Paulo. A quantidade de jovens que virá a se tornar dependente, entretanto, ainda é um mistério. “Estatísticas americanas indicam que esse índice alcança cerca de 10% dos usuários”, avalia Guerra de Andrade. A inocência da maconha parece ser coisa do passado.