No Brasil, remédio é um bom negócio. Os medicamentos são tratados como se fossem hambúrgueres e as farmácias se proliferam como McDonald’s. O mercado farmacêutico no País é o quarto do mundo, com um faturamento de US$ 12 bilhões em 1998, contra US$ 6 bilhões de 1994. No mesmo período, o número de medicamentos vendidos caiu de 2 bilhões para 1,6 bilhão de unidades. Se as vendas caíram e o faturamento aumentou, significa que os preços subiram muito. Uma equação que remete a um triste resultado: segundo o Conselho Federal de Farmácias, cerca de 70 milhões de brasileiros não têm acesso aos medicamentos. Para a parcela que se pode dar ao luxo de se medicar, as notícias também não são animadoras. No Brasil, o simples ato de comprar um comprimido pode representar uma aventura por uma trilha repleta de armadilhas.
 

Logo no início dessa trilha, os que precisam comprar um remédio irão tropeçar na empurroterapia. A Organização Mundial de Saúde estabelece como ideal a relação de uma farmácia para cada grupo de oito mil habitantes. No Brasil, a relação é de uma farmácia para cada três mil habitantes. A lei determina que haja um farmacêutico de plantão em cada farmácia, uma medida tão importante quanto ignorada. Em Alagoas, por exemplo, são mil farmácias e apenas 200 farmacêuticos. Essa é uma das principais causas da empurroterapia com todos os seus efeitos colaterais (leia quadro à pág. 36). “É comum se observar nas farmácias um balconista convencendo os clientes a comprarem os remédios dos laboratórios que mais vantagens lhe oferecem”, afirma Antônio Barbosa, presidente do Conselho Regional de Farmácias do Distrito Federal.
 

Quem paga essa conta é o consumidor. Os investimentos dos laboratórios em marketing representam de 15% a 25% do custo de um remédio. Mais do que encarecer os produtos, porém, a empurroterapia faz com que o consumidor leve para casa um remédio muitas vezes inadequado para o seu problema. Não são raros os casos, por exemplo, de gravidez indesejada em mulheres que usam o DIU. “O problema não está no DIU”, explica Barbosa. “O DIU provoca uma pequena inflamação que impede a gravidez, basta que uma mulher tome um antiinflamatório qualquer que poderá estar anulando o efeito do anticoncepcional.” O remédio mais vendido no Brasil é o Cataflan, um antiinflamatório recomendado por dez entre dez balconistas de farmácias.

Falsificações – Superado o obstáculo da empurroterapia, a aventura de se comprar um remédio continua, com armadilhas ainda mais perversas. “Como ninguém fiscaliza nada, é muito fácil colocar no mercado remédios falsos ou roubados”, assegura o deputado Robson Tuma (PFL-SP), membro da CPI dos Medicamentos. No mês passado, ele mesmo comprou um tubo de Derme Ative, creme que promete combater a celulite. A embalagem diz que o medicamento foi produzido em 1998 pelo laboratório Sidon. O problema é que o laboratório fora fechado em 1996 e reaberto meses depois com o nome de Sidome. “É evidente que o produto é falso”, assegura o deputado. O Derme Ative foi comprado na Drogamed, uma das maiores redes do Brasil, cujo proprietário é Aparecido Camargo, ex-presidente da Associação Brasileira de Farmácias (Abrafarma), aquele que declarou na CPI existir no mercado os remédios bons para otários. Em 1996, pelo menos uma pessoa morreu até que a Vigilância Sanitária constatasse a existência no mercado de uma enorme quantidade de Androcur falso – remédio usado por pessoas com câncer. Dois anos depois, dezenas de mulheres engravidaram porque ingeriram farinha pensando que era Microvilar, famoso anticoncepcional.
 

Todos esses problemas seriam facilmente evitados caso as leis fossem cumpridas. A legislação obriga que as distribuidoras de medicamentos façam constar nas notas fiscais o número do lote de fabricação. A CPI constatou, no entanto, que cerca de 90% das notas não registram o lote de fabricação do medicamento. A falta de vigilância, porém, não é privilégio das drogarias. A CPI também identificou que remédios, inclusive os de tarja preta, são vendidos até por camelôs.
Depois de passar pelas arapucas da empurroterapia e dos falsificados, o consumidor encontrará a terceira armadilha na hora de pagar o remédio que comprou. Essa começa a ser armada muito antes de os medicamentos serem distribuídos. “Estamos reféns dos laboratórios multinacionais, que manipulam seus custos e fazem com que o Brasil tenha um dos remédios mais caros do mundo”, adverte a deputada Vanessa Graziottin (PCdoB – AM). “Um superfaturamento que só o governo insiste em não ver.” Em janeiro e fevereiro de 1998, quando houve a desvalorização do real, a Secretaria de Acompanhamento Econômico reuniu-se com os representantes dos laboratórios e definiu que durante o ano passado os remédios poderiam ter um aumento de até 26,9% por causa dos insumos importados, pagos em dólar. No final do ano, o aumento médio foi de 16,4%. O secretário de Acompanhamento Econômico, Cláudio Considera, comemorou o resultado. Creditou como um sucesso do governo a diferença de quase 10% entre o aumento efetivo e o autorizado. Na verdade, Considera e seus subordinados foram iludidos pelo forte lobby do setor. Planilhas de custos elaboradas pelos próprios laboratórios e analisadas pela CPI indicam que entre 1997 e 1999 o preço dos insumos importados para a fabricação de remédios caiu no mercado internacional. O diclofenaco de sódio, por exemplo, princípio ativo do Cataflan, despencou cerca de 35%. Nas farmácias, porém, o Cataflan teve um aumento médio de 10% entre setembro do ano passado e janeiro. “Essa distorção só será enfrentada quando o governo passar a investir nos laboratórios oficiais como reguladores do mercado”, avalia o ex-ministro da Saúde Jamil Hadad, defensor de uma política nacionalista para o setor. As planilhas de custo do laboratório Far-Manguinhos da Fundação Oswaldo Cruz mostram que é possível fabricar os medicamentos mais vendidos no País com um preço até 1.000% inferior ao dos laboratórios multinacionais. Evasão de divisas – Um dos remédios mais vendidos no Brasil é o Renitec. Só em 1998, esses comprimidos foram responsáveis por um faturamento de US$ 58,2 milhões. Trata-se de um anti-hipertensivo à base de enalapril, fabricado pelo laboratório americano Merck Sharp. Nas farmácias, a caixa com 30 comprimidos de Renitec custa em média R$ 30. Um remédio similar, produzido pelo Teuto (nacional), custa cerca de R$ 16. Dados apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento explicam a diferença. No ano passado, o laboratório Merck Sharp pagou US$ 7,9 mil por quilo do enalapril importado. No mesmo período, o laboratório Teuto pagou US$ 320 por quilo da mesma matéria-prima. Uma diferença de 2.368%. Ambos importaram cerca de duas toneladas do produto. “Os médicos receitam o produto do Merck Sharp porque os laboratórios multinacionais têm um forte esquema publicitário. É o mesmo que pagar mais por uma calça de grife”, diz Antônio Barbosa. Segundo ele, essa situação se repete com os 40 medicamentos mais vendidos no Brasil. Para alguns deputados da CPI, o superfaturamento pode esconder um crime maior do que o de maquiar uma planilha. “Estamos investigando a possibilidade de alguns laboratórios estarem fazendo remessa irregular de recursos para o Exterior”, adianta Robson Tuma. Para dirimir essa dúvida, a CPI pediu ao Ministério do Desenvolvimento que informe sobre a origem dos produtos importados. “Com certeza, muitos laboratórios importam de suas matrizes, o que pode configurar uma remessa ilegal de lucros”, afirma a deputada Vanessa Graziottin. Na CPI, o presidente da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Abifarma), José Eduardo Bandeira de Melo, informou que a diferença de preços se deve à qualidade do produto. Um dado que foi ignorado pelos deputados. “A variação de qualidade nessas químicas é ridícula”, diz a deputada Vanessa, que é farmacêutica.
Apesar de tantos indícios apontando para uma máfia dos remédios, a CPI tem encontrado dificuldades para investigar a verdadeira contabilidade dos laboratórios. A quebra de sigilo bancário de 21 deles somente foi conseguida no dia 1º, após três semanas de embates entre governistas e oposicionistas e mesmo assim por causa de um acordo político e de uma declaração do secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, que destoou do discurso governista. Segundo ele, para a investigação ter sucesso seria indispensável a quebra dos sigilos bancários dos laboratórios. Os governistas concordaram em quebrar o sigilo bancário, desde que fossem preservados os sigilos telefônicos. “Agora poderemos saber como atuam efetivamente essas multinacionais”, anima-se o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP).

Genéricos – Ao mesmo tempo que o governo tenta barrar as investidas da CPI sobre os segredos contábeis, aposta nos genéricos – remédios sem marca, feitos com a mesma matéria-prima dos demais – para tentar levar medicamentos mais baratos à população, uma bandeira empunhada pelo ministro da Saúde, José Serra, e que agrada os laboratórios nacionais. Pelo menos é nisso que aposta o Vitapam, de Anápolis (GO), o segundo maior produtor de genéricos do País. Há mais de uma década, essa política deu resultados nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, a lei dos genéricos levou oito anos para ser aprovada e somente no mês passado o consumidor viu a chegada de alguns poucos produtos assim ao mercado, com um preço 40% menor do que o medicamento de marca. Atualmente, dezenas de laboratórios, inclusive nacionais, aguardam seus pedidos de registro de genéricos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O Ministério da Saúde tem sido criticado por demorar muito na tramitação desses registros. Mesmo assim, esse pode ser um final feliz para essa aventura cheia de armadilhas.