Poucas doenças amedrontam tanto quanto a Aids. Pelo número de pessoas atingidas, pela complexidade do vírus. Felizmente, porém, poucos males foram tão estudados pela ciência. Por isso, quase com a mesma rapidez com que o HIV se espalha, multiplicam-se também as esperanças de controle da doença. Na semana passada, foi a vez de cientistas italianos anunciarem uma nova e otimista perspectiva na luta contra a Aids. A bióloga Lucia Lopalco, do Instituto San Rafaelle, de Milão, revelou ter identificado um anticorpo fabricado pelo organismo humano capaz de desativar um dos mecanismos usados pelo vírus para entrar nas células a serem contaminadas. A pesquisa será publicada este mês pelo conceituado Journal of Immunology.

É um feito importante. Afinal, com a descoberta, os cientistas oferecem a possibilidade de se fechar uma das vias preferenciais de entrada do HIV nas células. Não se trata, obviamente, da cura da doença, mas sem dúvida é um caminho animador. Com menos acesso, dificulta-se a multiplicação do vírus no corpo de pessoas contaminadas. “A identificação desse anticorpo é mais um passo de uma linha de pesquisa extremamente promissora, que investiga os tipos de imunidade ao vírus e a intimidade entre ele e a célula”, afirma o infectologista Artur Timerman, dos hospitais Heliópolis e Albert Einstein, em São Paulo. Na verdade, a descoberta dos italianos é consequência de uma extensa investigação, feita em centros de pesquisa do mundo, sobre as estratégias do vírus para invadir o organismo. Hoje, sabe-se que, para entrar nas células, o HIV se vale de algumas “chaves” próprias para passar pelas “fechaduras” existentes nas células-alvo. As “chaves” do vírus são proteínas que fazem parte da sua cobertura. As “fechaduras” das células, em geral, também ficam na superfície. São encaixes perfeitos nos quais o vírus se liga para penetrar no interior da célula e iniciar seu processo de replicação.
 

Nesse sistema de entrada do HIV, duas substâncias presentes nas células recebem atenção especial da ciência: CXCR4 e a CCR5. “Elas funcionam como co-receptoras do vírus. Existem outras proteínas, mas essas são as mais importantes”, explica Conceição Acceturi, coordenadora da unidade de pesquisas clínicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora de uma tese de doutorado sobre a CCR5. Sem a ajuda deles, o HIV não entra na célula. O achado italiano foi resultado da inquietação dos pesquisadores. Explica-se. Durante muito tempo, uma das interrogações dos cientistas era saber por que determinadas pessoas, mesmo infectadas pelo HIV, não desenvolviam a doença ou permaneciam anos sem apresentar sintomas. Na busca por respostas, chegaram à CCR5. A certeza da sua importância veio a partir de uma constatação. Estudos mostraram que, nas pessoas em que a proteína não existe ou tem um defeito genético, a doença não se desenvolve – ou evolui mais lentamente. É fácil entender por quê. Como a proteína é um dos principais canais usados pelo vírus para entrar na célula, se ela não for produzida ou estiver em quantidade insuficiente, o sistema de abertura funcionará de forma precária. Defeituosa, pode ser comparada a uma porta sem fechadura. Infelizmente, os presenteados com uma CCR5 deficiente são poucos. “Estima-se que apenas 1% da população branca tenha a proteína deficiente”, revela o infectologista André Lomar, do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo.

Segredo – O que os cientistas de Milão descobriram foi justamente um anticorpo capaz de atrapalhar o funcionamento da CCR5. Ou seja, eles identificaram uma substância natural que muda o segredo dessa fechadura. Os mecanismos pelos quais o anticorpo produz seus efeitos ainda não estão esclarecidos. O que se imagina é que ele acaba “escondendo” a proteína no interior da célula. É quase uma forma de camuflagem. Equivale a dizer que, para defender a casa de invasões, foi colocado um muro diante da porta de entrada.
 

A proeza abre duas possibilidades animadoras de combate à Aids. A primeira é a perspectiva de se desenvolver um medicamento que tenha composição molecular igual ou bastante parecida à do anticorpo e, por isso, tenha a mesma capacidade de anular o funcionamento da proteína. “Poderá ser um avanço importante para o tratamento de pessoas infectadas”, avalia o infectologista André Lomar. A segunda é a criação de uma nova linha de pesquisa que possa levar a uma vacina eficaz. “A defesa do receptor é uma peça fundamental nesse sentido. Se existe um mecanismo natural, é possível criar um artificial”, explica Ricardo Diaz, diretor do Laboratório de Retrovirologia da Unifesp. Atualmente, existem dois grupos de vacinas sendo testados para avaliar seu poder de induzir algum tipo de imunidade. Um deles utiliza uma vacina produzida com pedaços da capa protéica que envolve o vírus, com os primeiros resultados de testes em seres humanos não infectados esperados para 2003. A outra “família” de vacinas utiliza vírus manipulados geneticamente para ganhar uma capa contendo fragmentos de várias partes do HIV.
 

É verdade, porém, que tanto um remédio quanto uma vacina feitas a partir do anticorpo ainda são sonhos de longo prazo. Em geral, levam-se muitos anos até que uma descoberta feita em laboratório – como é o caso do anticorpo – chegue até as farmácias na forma de um produto a ser consumido. E não se sabe se a substância funcionaria para todos. “Se isso será universal, é outra história”, afirma Mauro Schechter, chefe do centro de pesquisa em HIV do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio. Além disso, o papel da CCR5 no sistema imunológico ainda não foi completamente esclarecido. Os cientistas acreditam que inibi-la poderia prejudicar outras respostas de defesa do organismo. É um desafio a ser esclarecido.
 

No entanto, a descoberta tem um valor que não pode ser ignorado. Não só pelo potencial para o desenvolvimento de novas drogas contra a doença. Mas também por representar mais uma importante peça no intrincado quebra-cabeça que é a Aids. Além disso, o estudo ainda reforça uma das mais promissoras linhas de pesquisa que estão sendo conduzidas na procura de soluções contra o HIV. Trata-se justamente da busca de substâncias que impeçam o encontro do vírus com a célula-alvo. São os chamados inibidores de fusão. Embora com finalidade parecida à do anticorpo revelado pela equipe italiana, os inibidores de fusão têm método de ação diferente. Eles atuam sobre o HIV, e não sobre a célula a ser infectada. Essas substâncias modificariam o desenho das chaves do vírus, tornando-as, dessa forma, inadequadas às fechaduras das células. E também nesta área há avanços. Há pelo menos um medicamento do gênero em fase de testes clínicos. Trata-se do T20, pesquisado pela Roche. “Ele interfere especificamente na proteína GP41 do vírus e tem dado resultados animadores em testes com seres humanos”, explica Valéria Ede, diretora-médica da multinacional farmacêutica Roche no Brasil. Resta ainda mais uma etapa de testes com grupos maiores de pessoas antes do lançamento, previsto para daqui a três ou quatro anos. “O T20 poderá ser uma droga valiosa nas terapias de resgate, quando as outras substâncias estão falhando, e mais uma possibilidade como tratamento inicial”, avalia o infectologista Artur Timerman. Mais recentemente, a Roche iniciou estudos com outra droga de ação semelhante à T20, identificada como T1249, esta ainda sem data de chegada ao mercado. E na linha de investigação que tenta mudar as fechaduras da própria célula, o laboratório Glaxo Wellcome pesquisa uma substância capaz de inibir uma das proteínas que atuam juntamente com a CCR5 para abrir a porta da célula, o co-receptor Rantes.

Inibidores – Essa nova frente de luta contra o HIV representa um progresso significativo. Isso porque todos os remédios desenvolvidos até agora para retardar a multiplicação interferem no mecanismo de replicação do vírus depois que ele já está dentro das células. Ou seja, corre-se atrás do prejuízo. É assim que funcionam os inibidores de protease e de transcriptase reversa, duas enzimas produzidas pelas células infectadas das quais o HIV também se utiliza para levar adiante seu processo de invasão. Da mesma forma agem os inibidores da enzima integrase, que atuariam na etapa em que o HIV insere seu material genético dentro da célula humana (essa nova classe de medicamentos ainda não começou a ser testada em animais ou seres humanos, mas vem sendo estudada pelos cientistas do Laboratório de Pesquisa da Merck Sharp & Dohme há algum tempo). É verdade que os inibidores de protease e de transcriptase reversa são responsáveis pela fabulosa queda nos índices de mortalidade da doença. Se tomados corretamente, eles conseguem segurar a ferocidade do vírus com força impressionante. Graças à eficácia dessas drogas, a Aids adquiriu uma face menos aterrorizante, deixando de ser sinônimo de morte fulminante. Hoje, os soropositivos vivem mais e com melhor qualidade de vida.

Perspectivas – O problema, porém, é que esses mesmos remédios começam a emitir preocupantes sinais de que não estariam mais sendo suficientes. Embora existam pelo menos 15 tipos dessas duas classes de drogas, médicos e pesquisadores já detectam a existência de muitos casos de pacientes nos quais o vírus se tornou resistente à ação de um ou mais remédios. Por isso, é consenso que é preciso, o mais rápido possível, encontrar outras categorias de remédios que ataquem o HIV de forma diferente. É necessário apertar ainda mais o cerco, e com estratégias tão variadas que o vírus não tenha capacidade de fugir delas. É nesse contexto que os inibidores de fusão e o recém-descoberto anticorpo representam mais uma esperança. Afinal, eles combateriam o HIV numa fase diferente de sua multiplicação, dificultando ainda mais seu percurso no organismo.
Os esforços para controlar a doença não se limitam ao combate direto ao HIV. Existe uma alternativa, que começou a ser pesquisada recentemente e que vem levantando polêmica: a da suspensão de medicamentos por períodos controlados. “A interrupção estruturada do tratamento considera duas situações: a do indivíduo que esgotou todas as possibilidades de terapia porque não responde mais a remédios e a da pessoa recém-contaminada”, explica o infectologista David Uip. No primeiro caso, ao ser privado de remédios, o paciente poderia recuperar a sensibilidade a alguns deles. Já para as pessoas que tiveram contato recente com o vírus e recebem uma carga potente de medicação, a suspensão dos remédios serviria para gerar uma reação natural do organismo à presença de vírus enfraquecidos pelo ataque anterior das drogas. “A idéia foi desenvolvida na Alemanha, mas já está sendo adotada em diversos países, inclusive no Brasil”, emenda. A principal preocupação de Uip com as perspectivas de tratamento é a forma como a população recebe esse tipo de informação. “Quem já tem a doença, cria expectativas fantásticas. Quem não tem, acha que o problema acabou”, alerta. O médico tem razão. As pesquisas mostram que, de fato, existem caminhos promissores que permitem vislumbrar uma vitória nessa guerra. Hoje, entretanto, a maneira mais eficaz de impedir a expansão da doença continua sendo a prevenção.
 

História de dor e vitórias

1978
Registrados os primeiros sintomas da doença em homossexuais nos EUA e em heterossexuais no Haiti e na África

1981
Os EUA registram alta taxa de homossexuais com Sarcoma de Kaposi, tipo de câncer que começa a se espalhar entre os doentes

1982
Jim Curran, pesquisador americano do Centro de Controle de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, liga, de maneira inédita, a ocorrência da doença ao sangue e utiliza, pela primeira vez, o termo Aids

1983
A equipe do cientista francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, isola o vírus, batizando-o LAV (Lhynphadeno pathyvirus)
* O vírus chega à Europa. São registrados os primeiros casos de transmissão da doença por transfusão de sangue e em usuários de drogas. Aparecem também neste ano os primeiros bebes nascidos com a doença
* No dia 4 de junho a Aids faz sua primeira vítima brasileira, o estilista Markito

1984
O pesquisador americano Robert Gallo anuncia a descoberta do vírus causador da Aids, denominando-o HTLV-3 (Human T-Cellymphrotropic virus) n Os EUA descobrem o paciente zero, o comissário de bordo Gaetan Dugas, que levou a doença para o país

1985
A equipe de Luc Montagnier consegue estabelecer a estrutura genética completa do vírus, composta por 9193 nucleotídeos

1986
É desenvolvida a primeira droga contra a Aids, o AZT (Azidothymidine), um inibidor de transcriptase reversa, que dificulta a multiplicação do vírus dentro do organismo

1987
O AZT começa a ser comercializado

1991
Surgem outros inibidores de transcriptase reversa, criados para pacientes intolerantes ao AZT

1992
Os EUA aprovam outro medicamento para evitar a multiplicação do vírus, o inibidor de transcriptase ddC

1993
Pesquisadores europeus derrubam as esperanças no AZT. Por meio de muitas pesquisas, eles comprovam que o tratamento monoterápico com a droga não tem bons resultados a longo prazo

1995
É aprovado nos EUA o primeiro inibidor de protease, o Saquinavir. O remédio atua em outra fase de multiplicação do vírus. Também é liberado outro inibidor de transcriptase reversa, o 3TC n Acaba a polêmica entre Luc Montagnier e Robert Gallo: os EUA admitem que os franceses descobriram o vírus

1996
O pesquisador David Ho, dos EUA, anuncia ter eliminado o vírus HIV em nove pacientes recém-contaminados utilizando um coquetel de drogas. O anúncio causa entusiasmo

1998
David Ho percebe não ter eliminado completamente o vírus. São descobertos lugares no corpo onde vírus se escondem as drogas não têm efeito