Se Pedro Álvares Cabral desembarcasse hoje na praia de Coroa Vermelha, litoral sul da Bahia, iria deparar-se com uma das facetas mais cruéis da civilização: a favela. Desde 1972, o histórico pedaço de terra vem sendo ocupado pelos pataxós e por baianos de baixa renda, que foram se instalando em barracos sem infra-estrutura. Às vésperas das comemorações pelos 500 anos do Descobrimento, o governo da Bahia e o Ministério do Esporte e Turismo resolveram fazer uma faxina no local. Trezentas das 560 casas já foram derrubadas, na tentativa de remeter o visitante a um cenário mais próximo daquele encontrado por Cabral. Os brancos foram transferidos para o outro lado da BR-367 e os índios permanecerão na área que lhes pertence desde 1998, quando suas terras foram demarcadas. As novas casas dos pataxós, além de mínimas, foram superfaturadas. “Querem o lugar apresentável em abril. O que virá depois, pouco importa”, diz o antropólogo José Augusto Sampaio, autor do estudo que definiu a área de Coroa Vermelha para a demarcação. Na realidade, a praia onde os portugueses desembarcaram virou uma espécie de tubo de ensaios para os organizadores dos festejos.
 

Chegou-se a pensar em erguer dentro do mar colossais velas de cimento e em decorar a areia da praia com um astrolábio gigante. Até que o atual projeto, iniciado em setembro de 1999 e avaliado em R$ 6 milhões, estabeleceu que o maior de todos os monumentos é a magnífica paisagem tropical. Ali, uma pequena ilha de areia se junta ao continente a partir de um istmo, que pode ser percorrido a pé quando a maré está baixa. Hoje quem for a Coroa Vermelha encontrará um canteiro de obras e uma grande movimentação de tratores. O índio, embora consultado sobre as transformações, vem sendo relegado ao papel de coadjuvante, o que deixa os pataxós em pé de guerra. “Se não fizerem o que prometeram, não deixamos ninguém fazer festa”, ameaça o pajé Itambé, 66 anos, um dos primeiros a habitar o local.
 

Pelo acordo prévio, cada índio só seria removido de sua antiga casa quando a nova estivesse pronta. Muitos dos que já saíram eram brancos, mas de qualquer forma a previsão da construtora Freitas Melo, contratada pela Companhia de Desenvolvimento da Bahia, é erguer 200 novas unidades, das quais apenas 41 estão autorizadas. De acordo com o censo feito pela Funai em 1998, a população indígena da reserva de Coroa Vermelha era de 1.546 índios, em 317 famílias. Para o índio, habituado à roça, será difícil se adaptar a uma construção de alvenaria, de 44 metros quadrados. E sem terreno para plantação. Nada impede, portanto, que uma nova favela se estabeleça ali nos próximos anos. “Que história é essa? Somos donos da terra e estão mandando no que é nosso”, protesta Remunganha, pataxó de 73 anos que ainda está em sua antiga maloca. Os fundos de sua casa dão bem a dimensão de maquiagem do projeto: um alagado provocado pelos aterros, cheio de mosquitos e lixo.

Pedra portuguesa – Outro aspecto questionável é o preço das casas. Quando soube que cada unidade custa R$ 11,8 mil, um grupo de pataxós resolveu fazer uma pesquisa. Levantou os custos do material usado pela construtora e da mão-de-obra local. O valor não chegou a R$ 3,5 mil. A história é relatada pelo índio Catão, 26 anos, que estudou até a quinta série. Muitos dos que sobraram em suas antigas casas não sabem o que vai acontecer. É o caso de Arauí, 48 anos, oito filhos, que chegou ali em 1975. “Adoro esse lugar e não quero sair”, desabafa. A urbanização da área inclui um calçadão com dez mil metros quadrados de área e 500m de extensão, que vai conduzir o visitante até a ponta do continente onde os portugueses desembarcaram. O revestimento é de pedra portuguesa e, inicialmente, o ministro Rafael Greca pretendia decorá-lo com cruzes-de-malta, o símbolo do colonizador, que dizimou grande parte da nação indígena. Os índios chiaram e os responsáveis pela obra acabaram promovendo um concurso para eleger os melhores desenhos da tribo. Unanimidade entre os índios é a crítica à troca da cruz de madeira – marco da primeira missa celebrada pelo frei Henrique Coimbra em 26 de abril de 1500 – por uma similar de aço inox, com 15 metros de altura. O projeto é do escultor baiano Mário Cravo Filho. “Cruz de ferro não é a nossa origem”, critica o pajé Itambé, que é também um dos pataxós cuja loja de artesanato e remédios naturais foi temporariamente transferida para a beira da BR-367, enquanto o shopping definitivo não fica pronto. Ele substituirá a construção redonda que existia em Coroa Vermelha para venda de artesanato. Será uma estrutura circular de 3.200 metros quadrados, com 74 lojas. O projeto agrada a Itambé, mas nem por isso ele muda sua opinião: “O que será comemorado não é Descobrimento. É invasão. Cabral matou índios, roubou ouro, pau-brasil”, ataca. Catão prefere falar da atualidade: “O massacre não é a morte, mas a perda do espaço.”