A temperatura gira em torno de 42 graus e a pequena cidade agrícola de Hohenau, no interior do Paraguai, parece não se importar. O calor não atrapalha o ritmo acelerado dos preparativos para a comemoração dos 100 anos da cidade no dia 14 de março. Voluntários recolhem fotos, remexem documentos, restauram uma antiga casa de 1929 para ali montar um museu. Mas a memória do lugar tem um canto sinistro. O município, um dos 31 que formam o Estado de Itapúa, foi refúgio de nazistas. Entre os foragidos – guardados a sete chaves pela ditadura do general Alfredo Stroessner – estava o Anjo da Morte, Josef Mengele. O oficial médico da SS, cuja cabeça chegou a valer mais de US$ 3 milhões, teria vivido e morrido em Itapúa. Testemunhas asseguram que o exterminador de Auschwitz percorreu Colônias Unidas (formadas pelas cidades de Hohenau, Obligado e Bella Vista), passou mais tarde por San Pedro del Paraná e cercanias para morrer velho e doente, em 1986, em Potrero Yapepó. Mas esta não é a única versão divergente da oficial para a morte do carrasco. Para o historiador Ben Abraham, vice-presidente da Associação Internacional dos Sobreviventes do Nazismo, Mengele morreu nos Estados Unidos em 1992, protegido pela CIA. E mais: a ruidosa descoberta da ossada do Anjo da Morte no cemitério do Embu (São Paulo) em 1985 e a tese de que ele teria migrado para o Brasil em 1961 e morrido afogado em 1979, numa praia em Bertioga como o austríaco Wolfgang Gerhard não seriam verdadeiras. Fazem parte, diz Abraham, de uma farsa internacional capitaneada pelos EUA e, por pressão, assimilada por Israel (leia quadro à pág. XX).
A versão paraguaia, no entanto, garante que os restos mortais do carrasco de Auschwitz estariam depositados numa cova rasa, abandonada e sem identificação no cemitério de Potrero de Yapepó. Josef Mengele teria morrido aos 75 anos em 3 agosto de 1986 como Antônio Navarro, um médico curandeiro, que não possuía documentos e mantinha forte sotaque estrangeiro em seu espanhol. Hoje, essas comunidades, quase todas elas colonizadas por alemães, vivem novos tempos, mas preservam cacoetes extremistas, que muito se aproximam do antigo ideário que ameaçou o mundo. Cem anos depois, a lei do silêncio e a simpatia pelo racismo ainda imperam em Colônias Unidas. Hohenau, Obligado e Bella Vista não correspondem à realidade paraguaia. Hoje, são responsáveis por mais de 40% da produção de grãos do país e possuem a segunda maior cooperativa da América do Sul, com quatro mil filiados, movimentando US$ 100 milhões ao ano. São localidades com avançada tecnologia e qualidade de vida. No pós-guerra, as colônias eram uma espécie de anexo da Alemanha, financiadas pelo governo alemão e entidades religiosas; além de muito prestigiadas por Stroessner. Mas tudo tem um custo. O preconceito, a formação de grupos neonazista de adoração ao diabo e o abuso de poder por parte da guarda civil são dados assustadores. Durante anos a fio, a cultura germânica, rígida e de disciplina quase militar, imperou respaldada na ditadura. A língua oficial da região foi o alemão, a única bandeira hasteada nas escolas era a da Bundesrepublik. Só há dez anos é que a bandeira paraguaia tremula junto à outra. Tem gente que garante que nas escolas, no fim dos anos 50, início dos 60, tinha que se saudar Hitler.

Intocáveis – A guarda civil, formada por 73 cidadãos e que tem como atribuição fazer a segurança da comunidade, mostra que o tempo é moderno, pero no mucho. Dentro da corporação existe um grupo de 13 intocáveis que usam e abusam da sua condição junto à população. Segundo relatos de moradores que não querem se identificar por temer represálias, esse pequeno grupo anda fortemente armado com M16 e outras armas automáticas pesadas, possui campos privados de tiro e atua nas colônias como polícia. O alvo principal são os paraguaios. “Eles têm entre 45 e 60 anos, são todos descendentes de alemães e nazistas em sua concepção. Aqui, até os cemitérios são divididos. Paraguaios de um lado, alemães de outro. Eles justificavam que, no passado, os alemães doaram as terras para o cemitério e por isso queriam espaço privilegiado.”
 

Os poucos integrantes das primeiras e segundas gerações de colonizadores nos fazem voltar no tempo para entrar na história dos nazis em Colônias Unidas e pôr em xeque a versão de que Mengele morreu no Brasil em 1979. O ano agora é 1958. A família Tischeler recebe os convidados para as bodas de ouro de Raimond, o patriarca e um dos primeiros moradores da Hohenau. Ao lado de Alban Krug, figura ilustre da comunidade, chega para o regabofe um médico alemão então apresentado por Krug para a maioria dos mortais como Fritz Fischer. O doutor Fischer era o mesmo que, no campo de concentração de Auschwitz, Polônia, atendia pelo nome de Josef Mengele. “Na época não era possível falar nada, mas sabíamos que aquele homem que veio às bodas de papai era Mengele”, diz Arno Tischeler, 76 anos. “Me lembro muito bem que ele não quis fazer parte da fotografia com todos os convidados.”

Humano e piedoso – O atual prefeito de Hohenau, o colorado Bonibaldo Junghanns, conta com entusiasmo os preparativos para a festa do centenário. Ele dispara a lembrar histórias da localidade, fundada por alemães-brasileiros que trocaram Sierra Pelada, no Rio Grande do Sul, pela então selva paraguaia em 1900, na tentativa de progredir e ganhar mercado. A exposição histórica é interrompida por ISTOÉ, que mostra a foto do Anjo da Morte, sem citar seu nome. Bonibaldo reconhece de imediato o homem da foto como Josef Mengele, a quem foi apresentado, por volta de 1960, quando trabalhava para Alban Krug. “Eu tive o prazer de morar com ele por mais de dois anos. Ele se apresentava como doutor Fischer. Era um senhor muito distinto, sempre bem arrumado, nobre.” Como se desconhecesse as atrocidades cometidas pelo médico, responsável pela morte de mais de 400 mil pessoas e mutilação de milhares de outras com seus experimentos, o prefeito de Hohenau exaltava o estilo nobre e germânico do homem qualificado por ele como impressionantemente humano e piedoso. “Quando algum animal adoecia, ele corria para cuidar. Me recordo que ele se sentava na varanda da casa e dedilhava uma viola, cantando em alemão coisas da sua terra. Ele cantava e chorava, lembrando de sua terra natal.” Quanto à carnificina provocada pelos experimentos feitos por Mengele junto aos judeus em Auschwitz, principalmente com “zwillingen” (gêmeos), Bonibaldo justifica: “Hoje estão fazendo a mesma coisa e ninguém fala nada. Isso era coisa da guerra. Não entendo por que não gostam de Mengele.” Fazendeiro próspero, o prefeito de Hohenau não esconde, como a maioria dos 17 mil moradores de sua cidade, reverência ao ditador Stroessner, que presidiu o Paraguai com mão-de-ferro até 1989. O general abrigou e protegeu, como Perón na Argentina, fugitivos nazistas durante seu governo. Ele ajudou a conceder cidadania paraguaia, em 1959, para Josef Mengele.

Fantasma – O carrasco nazista teria vivido de 1960 até 1965 com os Krug numa confortável casa em Hohenau, a 20 quilômetros do asfalto, próxima à ponte do rio Poromocó. Na época, o acesso à fazendola de 80 hectares era precário, mas muito bem guardado pelo Exército de Stroessner. Antes de morar com os Krug, o primeiro abrigo do Anjo da Morte teria sido o hotel Tirol del Paraguay, em Capitán Miranda, município entre Colônias Unidas e Encarnación. Mengele teria passado alguns meses na propriedade dos belgas Reynaers. Há um manto de silêncio quando se tenta investigar a passagem de fugitivos da guerra por essa região. Mengele é um fantasma que assombra as comunidades pelas quais passou. Seus feitos, vida e morte integram-se ao mito criado em torno da sua obscura vida na América do Sul para fugir da pena de morte que lhe seria imposta, a exemplo de outro nazista, Adolf Eichmann, capturado em 1960 por Israel em Buenos Aires e condenado à forca. São muitas as histórias e quase nenhum documento. O que existem são depoimentos, memórias. Segundo os que viveram a época, qualquer prova de envolvimento com os nazistas que se esconderam no interior do Paraguai, foi destruída com a derrocada de Stroessner.
 

Ao decidir fugir da Alemanha em 1949, Mengele ficou só. A mulher, Irena, e o filho, Rolf, permaneceram na Europa. Com passaporte da Cruz Vermelha, o demônio nazi chegou à America do Sul por Buenos Aires. Viveu na Argentina até 1960, quando a pressão internacional aumentou para que Mengele fosse repatriado. A misteriosa morte da judia Nora Aldot, empurrada, por ele, do Cerro Catedral, em Bariloche, segundo revelou a revista alemã Der Spiegel numa reportagem de 12 páginas em 1985, teria apressado sua fuga para o Paraguai. Em Hohenau, contam, teria vivido outra paixão que lhe dera um segundo filho. IstoÉ procurou a alemã Rosália Stoller, a parteira de Colônias Unidas que chegou ao Paraguai em 1924. Vovó Stoller, como é conhecida, está com 98 anos. Ela conta, com impressionante memória, que trouxe à vida mais de três mil crianças. Quando perguntada sobre uma senhora de nome Garlet e sua gravidez, diz tê-la conhecido, mas se cala sobre a criança e a passagem do Anjo da Morte por ali. Louise, filha de Rosália, traduz o silêncio: “Meu irmão foi para a Alemanha estudar e não pôde voltar. Não era nazista, mas foi obrigado a lutar para Hitler. Quase morreu. Durante o governo Stroessner sabíamos dos nazis, mas esse tema era proibido. Existiam lugares proibidos, protegidos pelo Exército. Muita gente foi ameaçada por saber demais.” A guerra acabou, mas parte do sentimento que a provocou vive em Hohenau. Para alguns, é preciso, antes de comemorar os 100 anos, expiar as faltas. Seguir o exemplo de vovó Stoller, que prefere falar das vidas que ajudou a pôr no mundo do que dos horrores de uma guerra e seus comandantes, que puseram seu filho no front e aterrorizaram o planeta com seu propósito.