Falls City é uma típica localidade americana, perdida no meio do nada do Estado de Nebraska, em que seus jovens mergulham no tédio do provincianismo, embebedando-se e inventando diversões idiotas como o esqui em pára-lamas das camionetes. Não muito distante dali, em Lincoln, outro lugar alheio à evolução dos costumes, Teena Brandon sente na pele o que é ser uma pessoa diferente. Disposta a viver o homem que ela não é, cortou o cabelo, escondeu os seios amassando-os com uma faixa, vestiu jeans e colocou um volumoso enchimento no meio das pernas. Em vez de Teena, passou a dizer que era Brandon, mas, no lugar de alcançar a tranquilidade com a nova identidade imposta, começou a ser caçada como um bicho. Foge deixando para trás uma série de pequenos delitos e se aboleta em Falls City, crente que sua aparência andrógina iria enganar as garotas entediadas e os marmanjos estúpidos de lá. E enganou. Com certa estranheza, é certo. Todos, no entanto, se renderam aos encantos daquele garoto de boca bonita, mãos delicadas e voz indefinida. Especialmente as meninas, seu alvo específico. O que Brandon não imaginava é quão ameaçador ele/ela seria na vida daquelas pessoas sem perspectiva. Esta é uma história real, acontecida no final de 1993, que induziu a diretora Kimberly Peirce a se debruçar sobre ela e a realizar Meninos não choram (Boys don’t cry, Estados Unidos, 1999) – estréia nacional na sexta-feira 10 –, um filme que, a despeito do tratamento sensível dado à personagem principal, é um soco no estômago.
 

Falar de crise de identidade sexual não é fácil. Kimberly, porém, soube dar o polimento exato, abordando a coragem de Brandon em levar adiante seu sonho, sem juízo de valor ou qualquer maniqueísmo. Mostrou um ser atormentado, mas fantasioso na possibilidade de materializar seu desejo e que, para desespero dos que posteriormente descobriram a verdade, provou ser muito mais homem em relação à necessidade feminina de sexo e afeto do que qualquer um dos brutamontes de ejaculação precoce. Bastante da intensidade de Meninos não choram, na verdade, deve-se a Hilary Swank, vencedora do Globo de Ouro na categoria melhor atriz-drama e indicada ao Oscar. Sua interpretação é magistral. Em alguns momentos tem-se a nítida impressão de que na tela realmente está um garoto bonito à caça de uma namorada.
 

Assim que soube dos testes para o papel, Hilary – que por coincidência nasceu em Lincoln, mas nunca tinha ouvido falar de Brandon Teena – embarcou para Nova York. No dia do teste, escondeu o cabelão loiro sob um chapéu de caubói, meteu-se em calças compridas e saiu vestida para vencer. Não deu outra. Antes mesmo de ser escalada, a recepcionista do local já a tinha anunciado como um “rapaz que veio para o teste”. Determinada, Hilary gastou seis semanas fazendo treinamento vocal para poder falar mais grave, exercitou junto a um personal training com a intenção de ganhar músculos, cortou os cabelos e em seguida os pintou de castanho-escuro. Só então foi às ruas e viu que era tratada como homem. “Aprendi muito com a humanidade, sobre como as pessoas julgam os outros pela aparência”, conta a atriz.
 

O resultado de tanto empenho pode ser visto na fita de Kimberly Peirce, que se lançou às filmagens depois de passar cinco anos totalmente embrenhada na história trágica que alimentou a mídia americana por muito tempo. No total, ela amealhou dez mil páginas de transcrições e anotações sobre o caso, acrescentadas a inúmeras entrevistas in loco. Em sua maioria são testemunhos contraditórios e ambíguos como a vida de Brandon, uma pessoa que teve como pecado maior encantar a garota Lana Tisdel (Chloë Sevigny) e desafiar os desejos reprimidos de dois jovens marginais, tão desajustados nas suas vidas quanto a crédula Teena Brandon, cujo único anseio era ser feliz.