Stanley Kubrick (1928-1999) era um homem que entendia de modo exemplar os mecanismos do casamento – até sua morte, em março passado, esteve casado por mais de três décadas com a artista plástica Christiane. Mas a prova pública do seu fetiche em relação à união homem-mulher está estampada em cores ultra-expressionistas no seu último filme De olhos bem fechados (Eyes wide shut, Estados Unidos/Inglaterra, 1999), com estréia nacional prometida para a sexta-feira 3. Trata-se de uma das maiores alegorias sobre o casamento apresentadas por um diretor. Só que, em se tratando do cineasta americano, que se radicou em Londres, nem todos os olhos estarão abertos para compreensão. Mas as evidências sobre o filme estão em toda parte. Seja na escolha do casal de atores protagonistas, Nicole Kidman e Tom Cruise, seja no decorrer de toda a narrativa na qual sexo e morte estão casados num ambiente de pesadelo na Nova York de fim de século.

Todo o restante da película, cheia de obsessões, ciúmes, medo, incursões pelo inconsciente, vazio espiritual e outras áreas penetradas pela objetiva de Kubrick, são apenas frutos gerados pelo onipresente casamento. Infelizmente, e por razões bastante óbvias, este também é um casamento em que um dos lados é predominante. No caso, o sexo como o cônjuge forte. Não seria para menos. A cena de abertura mostra toda a magnífica plasticidade de Nicole Kidman. Ela sai de um vestido negro – como uma cobra que se livra da casca – e pelo átimo de um abrir e fechar de olhos fica nua. Apenas esta sequência já bastaria para ativar libidos.

O rebuliço foi suficiente para gerar boatos dos mais variados matizes. Falaram que Cruise aparecia vestido de drag queen ou passava a maior parte das cenas nu, que a personagem de Nicole era viciada em heroína, que os dois eram psicólogos e gostavam de transar com seus pacientes, e que no set ambos levaram uma relação sexual muito além da mentirinha das lentes. Todas as especulações são falsas. Mesmo assim não faltaram cenas que a moral americana impingiu à censura, alterando-as digitalmente sem a anuência do autor, que já estaria morto durante a "operação limpeza". No Brasil não haverá nenhuma interferência. Kubrick filmou a adaptação, que fez em conjunto com Frederic Raphael, de um clássico menor intitulado Traumnovelle, escrito em 1926 pelo austríaco Arthur Schnitzler, previsto para ser lançado no Brasil, sem data marcada, com o título de Breve romance de sonho.

A viúva do cineasta disse que desde 1968, logo após terminar a obra-prima 2001 – uma odisséia no espaço, Kubrick se apaixonara pela história de Schnitzler e discutia com paixão suas possibilidades. Quase 30 anos depois ele levaria Cruise e Nicole para Londres, numa aventura que custaria US$ 65 milhões, demoraria dois anos para o término do filme e exigiria total dedicação do casal. O resultado nas telas mostra que a submissão e o sacrifício valeram à pena. Os atores completaram o melhor trabalho de suas vidas, inclusive lançando Kidman a um patamar dramático antes não suspeitado. Na história, o médico Bill Harford (Cruise) e a marchande Alice (Nicole) estão há nove anos casados. Levam uma vida sofisticada e endinheirada da elite social de Manhattan, e é possível se perceber uma genuína afeição entre os dois. Mas a calma aparente da superfície mal consegue esconder a inquietude das profundezas de seu relacionamento. A mesmice da convivência é escancarada com brilho numa das primeiras cenas, quando Alice pergunta ao marido como está sua aparência e ele responde mecanicamente que ela está linda, sem ao menos dar uma olhadela.

 

Traição – Em determinado momento, Alice confessa desejo mal contido e traição sonhada com alguém, apenas vislumbrado durante as últimas férias do casal. Tal sentimento poderoso, apesar de somente imaginado, seria capaz de quebrar irreparavelmente o contrato entre os Harford. O choque e a desolação mostrados por Cruise são dignos de uma nomeação ao Oscar. A partir daí o filme pertence a ele, que sai como Ulisses numa odisséia sexual de pesadelo. Tudo para voltar à sua Penélope. Há que se notar que a Manhattan mostrada como cenário no filme não existe. Nem ao menos se parece com a cidade real, e Kubrick – um perfeccionista capaz de gastar 45 semanas nas filmagens em vez das habituais 16 – sabia muito bem desta discrepância.

Morte e sexo ainda estão reservados para a famigerada passagem orgiástica, quando um verdadeiro carnaval veneziano ao estilo de Casanova de Fellini promete imagens mais picantes. Kubrick não sobreviveria para ver a mutilação que os americanos fizeram em seu 13° filme. Ele que sempre teve a vida marcada pelo compromisso com a qualidade e o repúdio à corrupção do mercantilismo, dificilmente cederia. Quanto ao fato de a crítica ter torcido o nariz para mais esta obra contundente do cineasta, ele possivelmente não daria importância. Stanley Kubrick já estava acostumado a só ter seus trabalhos aclamados pela geração posterior de críticos.