Um dia desses aproveitei uma gripe mal curada e fui para a cama com os originais da dissertação de Luís Francisco Wasilewsky sobre o teatro do saudoso Vicente Pereira, que ele apresentou no programa de pós-graduação da USP. Li as 180 páginas de uma vez, já que ele conta um pouco a história de todos nós que convivemos intimamente com Vicente e foi muito agradável ouvir os amigos lembrando-se dos momentos que todos nós guardamos envoltos na seda azul da saudade. Quando terminei a leitura tive certa dificuldade de voltar para o meu quarto, porque eu andava alhures. Andava na travessa Pepe, para onde eu volto cada vez mais amiúde e quase sempre chego batendo palmas no portão de Duse Naccarati, que morava no térreo. Ela não me vê, é claro. Vivemos agora em planos diferentes. Ela caminhou resoluta para o passado e eu fiquei aqui, vagando pelo labirinto, visitando um e outro. Continuam todos lá, pendurados nas janelas, naqueles verões que acendiam tantas paixões.

Nossos Natais eram sempre de janelas abertas, porque naquela época um aparelho de ar-condicionado era impensável. Eu olho e nos vejo aprisionados no tempo, as gargalhadas brotando daquele pequeno prédio. Ouço a voz de Dusek cantando, enquanto descia as escadas, e há sempre o sorriso de Vicente Pereira iluminando os pedaços mais nebulosos da lembrança.

Deus morava na Pepe. Se não morava, nós acreditávamos que sim. A nossa geração mergulhou no misticismo e na comédia com a mesma voracidade. Havia sempre algum mantra sendo entoado, ardiam os incensos nos apartamentos e a luz era filtrada por algum pano indiano, trazido de uma viagem sem volta; assim, a Pepe para onde Duse caminhou, ao encontro de Vicente, e para onde espero caminhar feliz um dia, vive envolta numa luminosidade rara. Ali, as tendências esotéricas tinham abrigo certo. Líamos Madame Blavatsky e bebíamos as palavras de Osho. Segundo Mauro Rasi, vivia-se “… uma corrida atrás dos gurus da época. As religiões eram lançadas como coleções de grandes costureiros. Havia o Passini, fundador da ‘seita do abraço’. Era o Gaultier-esotérico da época. Vivia em Goiânia, de modo que a ‘tiurma’ saía de Ipanema pra abraçar em Goiás, passar aquela energia. Sem falar no Rá, claro. Quem não comia com talheres entortados pelo Thomas Green Morton era um pária. Tinha os adeptos do Trigueirinho, que afirmava que os extraterrestres vinham do triângulo das Bermudas…” e por aí vai. Nós realmente acreditávamos em cada uma daquelas coisas (e eu confesso, quase timidamente, que em algumas ainda me agarro com força, para afugentar o vazio que eles deixaram). A fé, na época da Pepe, não cabia nos aposentos e derramava-se janela abaixo, ganhando a rua e o verão lá fora.

É por isso que, embora eu tenha adquirido o hábito de viajar nessa época do ano, não me acostumo com um Natal de janelas fechadas. Não há meio de me acostumar. Certa vez, em Berlim, pedi licença, levantei-me da mesa da ceia, fui para o quarto e abri as janelas, à espera da mágica, que por fim se deu, porque às vezes a neve lá fora nos traz um janeiro de outrora e nesse janeiro é verão. Acho que é isso.