Era o dia 9 de maio de 1978. Piazza de Botteghe Oscure, centro de Roma. O padre esperou um pouco e logo foi chamado. À sua frente, pela primeira vez, Enrico Berlinguer, principal dirigente do Partido Comunista Italiano. Feitas as apresentações, o religioso confessou: nunca imaginava que um dia estaria na sede do PCI. No passado, teria a sensação de estar entrando na ante-sala do inferno. A personalidade de Berlinguer, suas propostas renovadoras e a atitude de iniciar um diálogo com a Igreja fizeram-no mudar de posição, e ali estava ele, padre católico, conversando com o mais destacado comunista italiano. Renzo Rossi, cujas mãos se movem sem parar enquanto fala, conseguiu o que pouca gente conseguia: fazer Berlinguer rir. Explicou-lhe então: estava começando uma peregrinação pela Europa para divulgar a luta pela anistia no Brasil. Entre maio e novembro de 1978, percorreu 22 grandes cidades européias. Organizava a pressão externa para forçar o governo brasileiro a assegurar uma anistia ampla, geral e irrestrita.

No momento da despedida, após uma hora e 15 minutos de conversa, o telefone tocou. Antes de sair, Renzo notou que à medida que ouvia, Berlinguer ia empalidecendo. Saiu com a certeza de que se tratava de uma notícia grave. Ficou tão impressionado que voltou à sede do PCI e então soube do acontecido. Aldo Moro, o líder da Democracia Cristã, havia sido assassinado pelas Brigadas Vermelhas depois de 55 dias de sequestro. O carro fora encontrado nas proximidades da sede do PCI. Durante esta viagem, Renzo conversou com dirigentes da Anistia Internacional e com grande parte dos exilados brasileiros que estavam na Europa – Luís Carlos Prestes, Apolônio de Carvalho, Miguel Arraes, João Lopes Salgado, Diógenes Arruda Câmara. Já no Brasil, depois da anistia, sancionada pelo general João Figueiredo no dia 28 de agosto de 1979, Prestes disse-lhe que Berlinguer o mencionou em diversas ocasiões.

Italiano de Florença, desembarcado no Brasil em 1965 aos 40 anos de idade, Renzo Rossi foi o mais importante padre para os prisioneiros políticos a partir de sua primeira visita aos presídios em 12 de março de 1970. Conseguiu a autorização para visitar o padre Giorgio Callegari, um dos dominicanos presos em novembro de 1969, quando da ofensiva da repressão que resultou na morte do dirigente comunista Carlos Marighella. Correu o primeiro grande risco: aceitou servir de mensageiro da carta de religiosos do presídio Tiradentes, protestando contra dom Agnello Rossi, arcebispo de São Paulo, que pretendia celebrar a Páscoa dos militares. Frei Betto, um dos dominicanos presos, queria que dom Lucas Moreira Neves, também visitando os presos aquele dia, levasse a carta a dom Agnello. Dom Lucas, no entanto, pediu que Renzo o fizesse.

– Mas se o senhor, que tem a autoridade que tem, não quer fazer, como vou eu levar?

– Saímos juntos e estando comigo ninguém o revistará.

Protestou, mas acabou aceitando. Renzo passou pelos guardas, tenso, e não foi revistado. A carta chegou ao destino. A presença solidária do padre no dia-a-dia dos presos resultou numa história de amor, aparentemente improvável, entre um padre pleno de princípios religiosos e um contingente de ateus convictos. César Teles, preso entre 1972 e 1977, vinculado então ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tenta uma explicação. "O que distingue o padre Renzo dos demais religiosos que conheci é a sua amizade pela humanidade." Maria Amélia, mulher de César desde então, o define como a pessoa que melhor encarnou o espírito da anistia. Mergulhou profundamente no trabalho entre os presos, correndo todos os riscos.

E o que tornou singular a presença dele entre os presos foi sua alegria. Isso, nem que fosse por pouco tempo, tinha o poder de dissipar a tensão. Ao contrário do que se possa imaginar, não era um progressista em termos doutrinários. Sempre foi um dogmático quanto aos preceitos tradicionais da Igreja. Paulo Vannuchi, preso político de família religiosa, pertencente à Ação Libertadora Nacional e que ficou preso em São Paulo entre 1971 e 1976, conta que mantinha duras polêmicas com ele, como a da infalibilidade do papa ou a indissolubilidade do matrimônio. Renzo até discordava de algumas posições do papa, mas considerava que tudo fazia parte dos desígnios de Deus. Vannuchi acentua, no entanto, que o seu sentimento de solidariedade era tão grande que nada disso importava. Entre os ex-presos há até os dias atuais um profundo reconhecimento da solidariedade dele. Depois da anistia, Renzo continuou ajudando a quem enfrentava dificuldades em função do tempo de prisão. Ele "representou um ponto de unidade das esquerdas nas prisões brasileiras", como explica Arthur Geraldo Bonfim de Paula, ex-preso político, até hoje militante do PCdoB. Theodomiro Romeiro dos Santos, preso na Bahia e que chegou a ser condenado à morte por ter reagido à prisão e matado um sargento da Aeronáutica, ressalta a confiança que se estabeleceu com Renzo.

Peregrinação – Depois da visita ao presídio Tiradentes, o padre envolveu-se com trabalhos da paróquia da Capelinha de São Caetano, bairro da periferia de Salvador. Só no início de 1975, atendendo ao pedido de uma paroquiana, Ida Ferreira de Souza, mãe de Benjamin Ferreira de Souza, preso havia poucos dias, é que Renzo voltou a um presídio político, desta vez à Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, e aí para não mais largar este trabalho. Entre 1975 e 1979, o religioso visitou 14 diferentes presídios. Em apenas um mês chegou a viajar 140 horas de ônibus, numa só peregrinação de visitas a presos políticos, percorrendo oito mil quilômetros. Perdeu noites acompanhando julgamentos.

Boa parte da hierarquia da Igreja amparou o trabalho dele. Dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Salvador, o municiou com uma carta de apresentação para que ele tivesse cobertura. Recebeu apoio de destacados dirigentes religiosos como dom Hélder Câmara, dom Paulo Evaristo Arns, dom Waldir Calheiros, dom Ivo Lorscheiter, dom Aloísio Lorscheider, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno, dom Adriano Hipólito, dom José Maria Pires, entre outros. O único que dificultou o trabalho de Renzo foi dom Eugênio Sales. Por carta, argumentou que a diocese do Rio de Janeiro já dava assistência aos presos e não ficava bem um padre estrangeiro exercer essa missão. Para Renzo, o cardeal queria evitar problemas em sua arquidiocese. Renzo podia criar um indesejável clima de tensão ao denunciar arbitrariedades e violências da ditadura.

 

Greve de fome – Renzo foi o principal pombo-correio entre os diversos presídios na articulação das greves de fome realizadas pelos presos em protesto contra as condições em que viviam. Numa delas, dom Ivo Lorscheiter disse publicamente que era contra aquela forma de luta. Entendia ser uma forma de suicídio, alternativa que os cristãos recusam. Renzo, abandonando sua tradição de respeito à hierarquia e desconsiderando as excelentes relações com dom Ivo, protestou. "Eu via a greve de fome como um holocausto voluntário, na mesma linha da atitude de Cristo, que morreu para salvar a humanidade, e por isso me insurgi contra a posição de dom Ivo, a quem respeitava muito."

No diário que escreveu sobre esse período, Renzo revela as contradições íntimas que marcaram esse singular trabalho pastoral e humanitário. Afirma que foi feliz por atender a um chamado religioso. A missão tornou-se a sua "Estrada de Damasco". Como para o apóstolo Paulo, uma grande conversão. "Não se tratava mais de converter gentios, mas solidarizar-se com pessoas que, independentemente da religião, mantinham acesa a esperança num mundo melhor", explica gratificado. Ao mesmo tempo, a tarefa representou uma descida ao inferno. A convivência com a violência, com crueldades inimagináveis, corpos e almas despedaçados sem dó nem piedade. Crianças e mulheres, jovens ou velhos, ninguém era poupado. A condição de padre, a atitude sincera e indistintamente solidária, o fizeram depositário de confissões que o marcam até hoje. Alguns episódios ilustram as impressões que lhe ficaram. Jessie Jane de Sousa e Colombo Vieira de Sousa Júnior, casados até hoje, foram presos no dia 1º de julho de 1970, na tentativa frustrada de sequestrar um avião no Aeroporto do Galeão, no Rio. Os dois foram torturados barbaramente. Jessie Jane sofreu de tudo: choques elétricos na vagina, nos seios, no ânus, nos dedos das mãos e dos pés. O mais destacado torturador foi o coronel-aviador Jorge Correia, então comandante da Polícia da Aeronáutica. Ele ria e dizia que iria violentá-la sozinho.

Mas, o que mais está presente na lembrança de Jessie Jane e do próprio Renzo, registrada numa carta que Jane fez a dom Adriano Hipólito e que integra os arquivos de Renzo, é a tortura de que ela foi vítima ao dar à luz sua filha Leta, em setembro de 1976. Os policiais não admitiam privacidade sequer durante a higiene pessoal de Jessie Jane no quarto da Casa de Saúde São Sebastião. Subitamente, as visitas foram cortadas, a filha de Jane não podia ser mostrada às pessoas, muitos policiais rondavam o quarto. Um deles ficava lá dentro. Gritavam que iriam matá-la e à sua filha: "Comunistas têm que ser mortos." "Logo que este médico filho da puta sair daqui, nós vamos matar você." Era como se estivesse novamente no DOI-Codi. Torturavam uma mulher e seu bebê de três dias só porque a clínica recebera supostas ameaças de "terroristas".

O casal César Teles e Maria Amélia também sofreu torturas. Presos em dezembro de 1972, em São Paulo, a maior violência para os dois foi saberem que seus filhos, Janaína e Edson Luís, então com cinco e quatro anos, também estavam presos. Segundo o impressionante relato, que consta de uma carta entregue por Amélia ao padre, os torturadores explicaram às crianças que os pais haviam sido "internados" naquele "hospital" porque estavam doentes. Janaína, com toda sagacidade, perguntou: "Por que no hospital tem soldado com espingarda?" As crianças não cessavam de perguntar: "Mãe, você está doente? Por isso que você está roxa? Por que o pai está verde?". Eles ficavam andando pela sede da Operação Bandeirantes (Oban), enquanto presos políticos eram torturados. Edson Luís não entendia: "Mãe, você é bandida?" Maria Amélia, buscando forças para não chorar, disse: "Não sou bandida, mas de fato estou presa." Edson Luís ainda chegou a perguntar: "Mãe, você está brincando de bandida?" Foram retirados dali, e passaram meses numa casa, em Minas Gerais, vigiados por policiais. Só voltaram a ver os pais em julho de 1973, e apresentavam sérias sequelas psicológicas: não sabiam conversar entre si, abraçavam-se, choravam e não falavam.

Selvageria – Renzo registra em seu diário a tortura a que foram submetidas duas jovens militantes presas no dia 28 de abril de 1977, Márcia Bassetto e Anita Fabbri, da organização Liga Operária. O relato é do dia 19 de junho de 1977, quando as visitou no Carandiru: "Anita e Márcia são duas moças dulcíssimas. Contam-me todo o seu drama, os seus terríveis sofrimentos, de vez em quando os seus olhos se enchem de lágrimas. Eu as acaricio a face e aperto suas mãos como filhas minhas. Diante da descrição das torturas a que foram submetidas tremo todo, me aperta o coração. Estas pobres meninas vêm sendo martirizadas, desnudadas, torturadas com choque elétrico, com o pau-de-arara, espancadas, humilhadas, ameaçadas de estupro, torturadas sexualmente a ponto de colocarem, por exemplo, uma vara na vagina de Márcia!! É terrível, meu Deus!"

Com Theodomiro Romeiro dos Santos, Renzo estabeleceu uma relação de profunda amizade. Tão intensa que, quando ele disse que precisava fugir porque temia ser assassinado na prisão depois que os demais presos políticos saíssem, Renzo se colocou à disposição para ajudá-lo. A anistia não alcançava Theodomiro, incluído entre os chamados "crimes de sangue". E havia muitos rancores contra ele entre os militares. Ele fugiu no dia 17 de agosto de 1979, 11 dias antes da promulgação da anistia. Renzo sabia a data da fuga e arrumou US$ 10 mil para ajudar nas despesas. Conseguiu o dinheiro com a organização italiana Rete Radie Resh, inicialmente concebida para dar apoio aos palestinos e que posteriormente se abriu para apoiar os perseguidos políticos da América Latina. Theodomiro fugiu, asilou-se na Nunciatura Apostólica, em Brasília, no dia 30 de outubro, e em 17 de dezembro partiu para o exílio, que só terminou em 1985, com o fim do regime militar. Quando indagado sobre por que ajudou nessa fuga, responde:

– Como podia recusar auxílio a uma pessoa que corria risco de vida?

Renzo Rossi foi embora do Brasil em julho de 1997, aconselhado pelos médicos. Seus problemas de coração exigiam descanso. A recomendação foi inútil. Pouco tempo depois, foi para Moçambique, sempre atraído pela periferia do mundo e por viver seu Deus em terra de excluídos. Está ensinando Teologia no Seminário S. Pio X, em Maputo, onde ISTOÉ foi achá-lo. Por todo o Brasil, ex-presos políticos fizeram, em 1997, encontros e despedidas. Colombo Vieira talvez tenha conseguido sintetizar a vida do amigo: "Existem algumas pessoas especiais no mundo, e o padre Renzo é uma delas."

 

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor do livro Lamarca, o capitão da guerrilha, e está preparando um livro sobre o padre Renzo Rossi

Colaborou Paloma Varón (Salvador)