Quando se trata da utilização das suas preciosas águas, o "Velho Chico" deixa de ser o rio da Integração Nacional e transforma-se numa torrente de desavenças regionais. A retomada da velha idéia de levar água do São Francisco para garantir a perenização de rios e açudes do Nordeste durante as estiagens na região foi saudada com entusiasmo pelos políticos dos Estados que podem ser beneficiados pelo projeto: Ceará, Rio Grande dos Norte e Paraíba. Mas detonou uma saraivada de críticas de baianos, mineiros, sergipanos e alagoanos, desconfiados dos efeitos em seus Estados. A artilharia pesada partiu dos baianos, donos do trecho mais extenso do rio. "Hoje, não existe nenhum projeto detalhado que explique como a transposição vai ser feita. Fazê-la desse modo é um crime", atacou o presidente do Congresso, senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), em entrevista ao jornalista Bóris Casoy no domingo 15. "Esse projeto não vai sair do papel", faz coro o secretário de Indústria e Comércio da Bahia, Benito Gama. Na verdade, os baianos estão preocupados em preservar os seus projetos de irrigação e energia elétrica que consomem águas do São Francisco. O Estado é um grande usuário do rio: utiliza 26% do seu volume de água e contribui com apenas 17%.

A reação pública de Antônio Carlos e de sua tropa não foi surpresa para o ministro da Integração Nacional, senador Fernando Bezerra (PMDB-RN), que tem como prioridade de sua gestão o projeto da transposição. "Eu não sou doido de brigar com o ACM", esclarece Bezerra. Depois de aceitar o convite para o Ministério, telefonou para o pefelista. "Olha, precisamos conversar sobre o São Francisco", sondou. "Só se for daqui a quatro anos", respondeu jocosamente Antônio Carlos. O plano plurianual que será apresentado na terça-feira 31 por FHC incluirá a transposição entre os projetos com recursos garantidos no orçamento.

 

Estudo arquivado – Bezerra montou uma equipe para fazer o que ACM exige: o detalhamento do projeto. Foi designado o engenheiro Rômulo Macedo, novo secretário nacional de Infra-Estrutura Hídrica. No governo Itamar Franco, foi Rômulo quem elaborou a proposta apresentada em 1993 pelo então ministro da Integração Regional, Aloísio Alves, conterrâneo de Bezerra. O projeto previa a retirada de até 150m3 por segundo de água do São Francisco, a partir de Cabrobó (PE), e beneficiaria apenas Ceará e Rio Grande do Norte. O estudo foi arquivado por inconsistência técnica.

O volume de água a ser desviado pelo novo projeto será menor: 70 m3 por segundo. Além de Ceará e Rio Grande do Norte, a Paraíba será beneficiada com a perenização dos rios Peixe e Piranhas-Açu. O projeto vai incorporar também a construção de barragens para regularizar a vazão dos afluentes do São Francisco, o que deve amenizar a desconfiança dos mineiros. Quase todas serão feitas em Minas Gerais, que responde por 70% do volume de água. A regularização do fluxo do rio vai beneficiar também projetos de irrigação em Pernambuco e na Bahia. Além disso, em cada barragem haverá uma hidrelétrica, aumentando a produção de energia em mais de dois milhões de megawatts. Bezerra acredita que contornará as resistências que impediram todas as tentativas de fazer a transposição. "Quero mostrar que o projeto é bom e será benéfico não apenas para o Nordeste, mas para todo o País", diz o ministro, que já acertou a parceria do governador do Ceará, Tasso Jereissati (PSDB), um dos principais caciques tucanos, nessa empreitada. "Serão 200 quilômetros de canais artificiais e mais de 2 mil quilômetros de rios perenizados, a um custo de US$ 1 bilhão. É praticamente o que se joga fora a cada ano para minorar os efeitos de uma seca", argumenta.

 

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Preocupação verde – Não são só as divergências regionais que constituem obstáculo às pretensões do ministro. Os "verdes" não escondem aversão ao projeto. "A primeira coisa é saber se há água suficiente e para que ela será usada. Os problemas ambientais do São Francisco, como o assoreamento que ocorre em Minas e na Bahia, são notórios", ressalva o ex-deputado e ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, Fábio Feldman. Jérson Kelman, futuro presidente da Agência Nacional das Águas (ANA), lançada no final de julho por FHC, condiciona a execução do projeto a um rigoroso levantamento sobre a sustentabilidade da transposição.

Se conseguir pelo menos iniciar as obras, o ministro da Integração alcançará uma proeza que vem sendo tentada, sem êxito, desde os tempos do Império. O primeiro projeto foi concebido no reinado de dom Pedro II, quando engenheiros estrangeiros foram contratados para resolver os problemas da seca no Nordeste. O desvio seria feito na divisa entre Pernambuco e Bahia. A tecnologia da época era insuficiente para superar o relevo acidentado da Chapada do Araripe e fazer a água chegar ao Ceará. Dom Pedro II acabou limitando-se a construir o açude de Cedro em terras cearenses. Na década de 50, Mário Ferracuti, um engenheiro italiano, apresentou às bancadas do Norte e Nordeste seu projeto de transposição. A idéia foi lançada pela revista O Cruzeiro em maio de 1958 e previa a construção de uma barragem perto de Cabrobó, de onde a água seria bombeada para o Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. O projeto foi bombardeado por todos os lados.

 

Histórico – A primeira proposta consistente foi apresentada em 1983 pelo ministro Mário Andreazza, que sonhava em ser sucessor de Figueiredo. O projeto morreu com o fim de sua candidatura. A tentativa seguinte foi a de Aloísio Alves, em 1993. No primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, os paraibanos Cícero Lucena e Fernando Catão, quando ocuparam a Secretaria Especial de Políticas Regionais, redesenharam o projeto de Aloísio e incluíram duas transposições para levar água ao seu Estado. Durante a gestão paraibana, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) também desenvolveu um projeto próprio para fornecer água a toda região do semi-árido, mas o seu grande problema é o custo – US$ 20 bilhões – e o prazo para conclusão, que levaria de 25 a 30 anos. Com um projeto menor, avaliado em US$ 1 bilhão e que aproveita um pouco das experiências anteriores, Fernando Bezerra vai tentar mais uma vez a ressurreição do sonho da transposição.


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