Com as bênçãos do Fundo Monetário Internacional (FMI), a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso conseguiu sobreviver à brigalhada interna na equipe ministerial, ao bombardeio de empresários e trabalhadores, às críticas dos aliados no Congresso e à vertiginosa queda da popularidade presidencial. Mas agora a batalha por uma mudança de rumos do governo ganhou um novo cenário: as ruas. Na quinta-feira 26, as esquerdas colocaram uma multidão na Esplanada dos Ministérios na maior manifestação de oposição nos quatro anos e oito meses em que FHC é inquilino do Palácio do Planalto. Convocada em junho na esteira da revelação de novas fitas do grampo no BNDES, a Marcha dos 100 mil, que na verdade contou com 80 mil pessoas, acabou centrando fogo na política econômica. O pedido de criação da CPI sobre a privatização do sistema Telebrás ganhou corpo em meio a uma guerra de palavras de ordem que pregavam a saída do presidente do poder antes do final de seu mandato em 2002. Essa radicalização gerou controvérsias internas no movimento e um bate-boca entre as oposições e o Palácio do Planalto, que viu no protesto intenções golpistas e a possibilidade de ele descambar para a violência. Isso não ocorreu. A marcha foi pacífica e muito mais do que uma simples concentração de militantes arregimentados pelos partidos de oposição. Com ou sem rumo, ela serviu para dar um recado claro do Brasil real e de sua insatisfação com o desemprego e a recessão econômica. "É um sinal de alerta sobre a necessidade de se redirecionar a política econômica, mesmo que para isso tenha de se renegociar o acordo com o FMI", advertiu o presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP). "Está registrado e já anotamos. É olhar para a frente e ver o que ainda pode ser feito", assinalou Fernando Henrique numa reunião com ministros em que fez um balanço do protesto.

FHC acredita que pode dar uma resposta à insatisfação das ruas sem bater de frente com o rígido receituário do FMI. Sob o comando de sua nova equipe do Planalto, o governo está preparando a toque de caixa um conjunto de medidas capazes de aumentar a oferta de empregos e ter impacto na área social. Entre outras providências, vai unificar os programas dirigidos para as pequenas e médias empresas, hoje dispersos em seis órgãos do governo, com o objetivo de criar linhas de financiamento a juros mais baixos. Vai lançar também um programa habitacional para injetar recursos na construção civil, um setor que emprega muita mão-de-obra. E, para desfazer a imagem de que está parado, o governo está empenhado também numa batalha de marketing. Nesta terça-feira 3, o Planalto divulga com todas as fanfarras o seu Plano Plurianual (PPA) com 360 projetos a serem concretizados nos próximos quatro anos. Batizado de "Avança, Brasil", o mesmo nome dado ao programa da campanha da reeleição em que FHC prometeu criar 7,8 milhões de empregos, o PPA prevê investimentos superiores a R$ 165 bilhões. Essa montanha de dinheiro, apresentada pelo governo como a grande alavanca do desenvolvimento, é, porém, mais um protocolo de intenções do que realidade. Só vai sair do papel se a iniciativa privada abrir o bolso e tocar os projetos em parceria com o governo, que tem restrições de gastos impostas pelo FMI.

Pressa – Fernando Henrique está tentando fazer omelete sem quebrar ovos, mas também está inquieto em busca de alternativas para não ser atropelado pelas ruas. "É evidente a necessidade de se acelerar a correção de rumos", admite o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga. "O presidente voltou a nos procurar. Sinto que desta vez ele está com pressa", conta um outro integrante do alto tucanato que integra a ala desenvolvimentista do partido. O PSDB tem sugestões a apresentar. Guarda na gaveta dois estudos, preparados sob a coordenação do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, com propostas para uma nova política econômica. "Apesar das palavras de ordem equivocadas, a marcha acabou fortalecendo a corrente no governo que defende uma nova rota", avalia o presidente do PPS, senador Roberto Freire (PE). Até a cúpula do PFL, que sempre deu respaldo à política econômica, engrossou o coro a favor das mudanças. A executiva pefelista acompanhou o protesto das oposições de camarote: das janelas da sede do partido no 26º andar da torre do Senado. Mas, mesmo a distância, sentiu a força do movimento. "O presidente deveria ler tudo que foi dito, extrair os radicalismos e ver o que poderia corrigir", sugere o líder do PFL na Câmara, deputado Inocêncio Oliveira (PE). Em termos mais diretos ACM traduziu a mesma preocupação. "O governo precisa flexibilizar sua política econômica e investir mais no social", cobra.

Mesmo reconhecendo a necessidade de mudanças, o senador minimizou a manifestação. Teve um bom motivo para isso: despeito. Numa conversa com o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), e o líder do PCdoB na Câmara, Aldo Rebelo (SP), ACM pediu que o abaixo-assinado com mais de um milhão de assinaturas cobrando a criação da CPI da Telebrás também lhe fosse entregue. Como sempre, queria dar uma "faturadinha". O PCdoB até que chegou a topar, mas os petistas vetaram. "Decidimos deixar o Antônio Carlos de fora porque ele estava desqualificando a marcha", justificou o líder do PT na Câmara, deputado José Genoíno (SP). No discurso para a multidão, Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou para espicaçar o presidente do Congresso e seu fundo contra a pobreza. "O ACM faz política há 45 anos para os ricos e agora que está com mais de 70 anos ficou com medo do Juízo Final. Mas o povo não quer migalha, nem cesta básica, nem esmola", tripudiou Lula.

 

Contra-ataque – À vontade no palanque, Lula tinha razão para se sentir com a corda toda. Depois de assistir durante todo o primeiro semestre aos parceiros políticos de Fernando Henrique acuarem o presidente e darem as cartas no jogo, a oposição finalmente conseguiu mostrar sua própria cara. A marcha significou uma virada para as esquerdas. Desta vez, elas não precisaram pegar carona em movimentos alheios como o dos ruralistas. "O objetivo é ampliar nossa penetração social e evitar que esse campo venha a ser ocupado por Ciro Gomes", diz José Dirceu. Na disputa por espaço das esquerdas, quem acabou escanteado foi o ex-governador Leonel Brizola. Com sua retórica incendiária em que prega as renúncias de FHC e do vice-presidente, Marco Maciel, Brizola estimulou uma radicalização das palavras de ordem do movimento, tais como "fora FHC" e "basta de FHC". Com isso, abriu a brecha para o contra-ataque do Planalto que passou a classificar a marcha de golpista. "Isso é impaciência pseudo-revolucionária. É o discurso do atalho que revela o dilema interno do PT entre optar por uma via revolucionária ou o caminho eleitoral", alfinetou o secretário-geral da Presidência, ministro Aloysio Nunes Ferreira. "Se o Aloysio, que foi nosso companheiro nas lutas das esquerdas, me convidar para um café da manhã, não vou", reagiu Genoíno, que na última semana preferiu trocar figurinhas com o chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso.

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O PT sentiu a estocada e tratou de amenizar o discurso. Brizola não gostou. Não compareceu ao ato em que os partidos entregaram a Michel Temer uma pilha de pacotes com os abaixo-assinados. Mesmo com essa divergência, PDT e PT vão continuar juntos na série de mobilizações programadas para os próximos dois meses que pode culminar com uma greve geral em outubro. Brizola, porém, está disposto a organizar um grande comício no Rio de Janeiro em que pretende repetir a pregação da renúncia de FHC e Maciel. Vai enfrentar dificuldades no PDT. "Não apóio a proposta de renúncia porque é um gesto unilateral", discorda o governador Anthony Garotinho.

Enquanto as esquerdas estão em lua-de-mel por terem se reencontrado com as ruas, FHC ainda vacila em promover mudanças na política econômica. Teme os riscos de uma guinada num quadro de instabilidade das contas externas do País. Como sociólogo, tem, porém, a consciência de que, se não tomar providências para aplacar a insatisfação popular, os protestos das ruas podem crescer e se transformar numa verdadeira crise institucional. Está na hora de FHC decidir qual dos dois riscos prefere correr.

 

O Brasil perdeu uma Argentina

Na revelação dos indicadores sobre crescimento econômico e renda, feita na terça-feira 24 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os brasileiros tiveram a oportunidade de saber o tamanho da sua riqueza no ano passado. A conclusão é que a economia brasileira permanece quase igual, mas os brasileiros ficaram mais pobres. Embora o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) tenha apresentado estagnação – um crescimento de mero 0,12% –, a renda per capita de cada brasileiro encolheu 1,45% dado ao fato de que um número maior de pessoas passou a dividir o mesmo bolo. Foi o pior resultado desde 1992, quando o País vivia a crise provocada pelo impeachment do governo Collor. Cada um dos brasileiros perdeu cerca de R$ 80 de sua renda – o valor anual foi de R$ 5.334.

O pior de tudo é que isso já faz parte do passado e a situação atual não é nada alentadora. Os resultados preliminares deste ano deverão mostrar uma deterioração ainda maior na medida em que a retomada econômica, iniciada no final do primeiro semestre, não dá sinais de vigor a ponto de provocar uma reviravolta na renda da população. No primeiro semestre, a economia brasileira já encolheu 0,42%. Mas o dado que mais impressiona é a perda calculada em uma moeda mais estável, como o dólar. Se forem levados em conta os efeitos da desvalorização do real em janeiro, a renda dos brasileiros ficou bem mais magra na comparação com a moeda americana. Um trabalhador que ganhava, por exemplo, o equivalente a US$ 1 mil (cerca de R$ 1,2 mil) antes da desvalorização, recebe hoje cerca de US$ 640 – uma queda de 36%. A dimensão do empobrecimento do País pode ser mais bem entendida com a queda do produto no primeiro semestre. A economia brasileira, cuja riqueza alcançava a cifra de US$ 775 bilhões no final de 1998, tinha um PIB de cerca de US$ 425 bilhões no final de junho. Em outras palavras, cerca de US$ 350 bilhões simplesmente desapareceram desde que o real passou a valer menos do que o dólar. A economia brasileira perdeu uma Argentina inteira.

André Vieira


 

Duplo poder na Venezuela

Se em Brasília a manifestação das oposições ocorreu num clima de normalidade democrática, o mesmo não se pode dizer dos últimos acontecimentos da Venezuela, onde reina o guru de Lula, o ex-coronel golpista e hoje presidente Hugo Chávez Frías. O país vizinho vive uma situação em que os analistas políticos costumam definir como "duplo poder", que geralmente antecede situações de ruptura institucional. De um lado, a Assembléia Nacional Constituinte (ANC), eleita em julho e majoritariamente composta de partidários de Chávez, de outro, o Congresso, eleito em novembro passado, onde os partidos que governaram nos últimos 40 anos são maioria. Na sexta-feira 27, a polícia venezuelana usou jatos d’água e bombas de gás lacrimogêneo para separar partidários e opositores do presidente, que entraram em choque em frente à sede do Congresso. O confronto ocorreu porque os congressistas tentaram realizar sessão extraordinária para discutir as últimas decisões dos constituintes, em aberto desafio à proibição feita pela ANC.

Na semana passada, os parlamentares da ANC – Chávez tem 120 das 131 cadeiras – mostraram que pretendem ser o poder soberano do país, como quer o presidente. Na terça-feira 24, a presidente da Corte Suprema de Justiça, Cecilia Sosa, renunciou ao cargo em protesto contra a decisão de seus pares que, por 8 votos a 6, aceitaram colaborar com a comissão criada pela ANC para "reformular" o Judiciário, o que na prática representa uma autodissolução da Corte Suprema. A situação provocou a reação da oposição – o Copei (democrata-cristão), a Ação Democrática (social-democrata) e o Projeto Venezuela (conservador) –, que rompeu o recesso que o Congresso se auto-impusera até outubro para evitar confronto institucional. Em resposta, a ANC aprovou a formação de uma comissão de "emergência legislativa", que na prática tirou do Congresso a maioria de suas funções.

"Não existe nenhuma possibilidade de uma ditadura na Venezuela", garante o presidente da ANC, o veterano Luis Miquilena, ex-militante comunista que foi torturado durante a ditadura do general Pérez Jiménez (1952-1958). Pode ser. O fato é que situações de duplo poder, por definição, são efêmeras. O caso clássico é o da Revolução Bolchevique de 1917, em que se contrapunham os "sovietes", assembléias de trabalhadores e soldados controladas pelos bolcheviques, e a Constituinte, onde os comunistas eram minoria. Em janeiro de 1918, Lênin resolveu o impasse fechando a Assembléia, sob a alegação de que ela não expressava a "legitimidade revolucionária". Seguiram-se 70 anos de regime de partido único.

Cláudio Camargo


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