Nas suas mais profundas fantasias, muitos um dia já imaginaram ser outra pessoa. Poder agir, fazer sexo, se exibir através do outro em atos de meticulosa perversidade sensorial e intelectual. Ainda mais quando este alguém é um ator charmoso, garboso no seu pódio da fama conquistada com papéis intensos, mas que ninguém lembra direito quais são. Pois o insosso Craig Schwartz, com seu jeito seboso e desgrenhado no vestir, que esconde um divino talento para manejar marionetes, agarrou a chance para ser notado. Mais ainda, de alcançar o estrelato na pele de ninguém menos que John Malkovich. É, ele mesmo, o fabuloso ator de Ligações perigosas, O homem da máscara de ferro e O céu que nos protege. Schwartz descobriu a possibilidade sem querer, como empregado de uma firma situada no andar sete e meio de um grande edifício, local em que, por ter sido feito para anões, todas as pessoas de porte normal são obrigadas a andar encolhidas. Com este enredo semi-surrealista, assinado pelo roteirista Charlie Kaufman, que também faz sua estréia no cinema, Spike Jonze realizou o ótimo Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich, Estados Unidos, 1999) –, em cartaz nacional a partir da sexta-feira 3 – uma ode simultaneamente divertida e sombria ao amor e ao desejo, que ainda aborda a crise de identidade.

Marionetes – Cansado de levar socos na rua, devido ao jeito libidinoso de mostrar a passionalidade de seu teatro de marionetes, Schwartz, interpretado por John Cusack, enfim arranja o emprego de arquivista que irá levá-lo à experiência única. Perscrutando um túnel lamacento, que se esconde atrás de uma portinhola, ele é sugado diretamente à mente de John Malkovich. No entanto, descobre que pode ficar lá por apenas 15 minutos. Depois é expulso e jogado à beira de uma autopista. Extasiado, conta tudo à mulher, Lotte – papel de Cameron Diaz, irreconhecível na sua tentativa de feiúra –, uma incansável funcionária de uma loja de animais, trabalho que a faz prestar mais atenção na ferida da iguana do que no marido que vez ou outra é inconvenientemente despertado pelo periquito tagarela. A partir daí, a história traçada por Kaufman leva o espectador a uma espiral alucinante de situações nas quais reside o questionamento básico de como alguém pode se projetar no outro, perdendo, inclusive, a identidade para conquistar o obscuro objeto do desejo. Neste ponto, John Cusack, um Alexandre Borges sem a libido, está perfeito na maneira como conduz sua paixão pela colega de trabalho Maxime (Catherine Keener, concorrendo ao Oscar de melhor atriz coadjuvante), uma ambiciosa que debocha dos sentimentos alheios até ser flagrada em tensão homossexual, quando enxerga nos olhos de Malkovich a atração feminina no momento em que Lotte está na sua mente.
 

Muitos hão de perguntar por que exatamente John Malkovich? O diretor Jonze – até então conhecido por dirigir clipes de Sonic Youth, Björk e Beastie Boys – disse que não podia ser outro, a não ser ele, pela sua figura enigmática. Escolha acertadíssima. Malkovich adorou a história estranha. O bizarro também não deixou de fazer parte no contato de Cameron Diaz com o cineasta, que concorre ao Oscar de melhor direção. Assim que conheceu o estreante em longa-metragem, refestelado numa poltrona de espaldar alto, balançando a cabeça, a voluptuosa namorada de Jim Carrey em O Máskara perdeu-se numa sensação estranha. Ora o achava semelhante a Robert De Niro, ora a Matthew McConaughey. Com Catherine Keener, o encontro de duas horas igualmente a fez pensar que Jonze era muito parecido com o enredo que ele descrevia. Mais esquisito ainda, contudo, vai se sentir o espectador que, depois de muito rir, ao final do filme terá vivido o extremo incômodo do que é ter uma crise de identidade.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias