Outro ano, escola nova para alguns, repeteco para outros. Centenas de pais renovam as esperanças. “Este ano, meu filho se emenda. Nada de advertências, suspensões nem pensar.” Limites colocados, resta aguardar. Mas é bom reavaliar a situação antes de enrugar a testa. Afinal, a equação turma do barulho igual a fracasso na vida adulta não é exata. A irreverência, o desejo de superar limites e o questionamento fazem parte do desenvolvimento da personalidade e se tornam, quando bem colocados, qualidades muito bem-vistas. A ex-ministra Cláudia Costin, a pré-candidata do PT à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, o apresentador de tevê Serginho Groisman, as atrizes Lu Grimaldi e Maria Paula, a cantora Cássia Eller e até César Lattes, um dos maiores físicos do Brasil, são exemplos de bagunceiros – ou melhor, ex-bagunceiros – que mostram que ser aluno exemplar não é requisito básico para uma carreira admirável. Sem contar gênios como Albert Einstein, Isaac Newton e Pablo Picasso, que tiveram dificuldade de se adequar às escolas.
 

Por que, então, a indisciplina e a colocação de limites se transformaram em tema principal de nove entre dez conversas e palestras de pais e educadores? Por que escola e pais se mostram atônitos frente ao descontrole de crianças e adolescentes? E não estamos falando só do Brasil. A desorientação é tanta que os britânicos, por exemplo, sugeriram recentemente a volta de castigos corporais nas escolas. Numa pesquisa, publicada em janeiro pelo jornal The Times, 51% dos pais defendiam a eficácia do modelo, banido há 14 anos das escolas públicas e há um ano das particulares. Para 90% deles, a indisciplina é culpa exclusiva dos alunos. Mas nem sempre é assim. Vários especialistas afirmam que há, de fato, uma indisciplina construtiva. Concordam também que o problema pode estar nos disciplinadores – pais, professores e escolas. Histórias de vida atestam a teoria. Puxar o véu das freiras, por exemplo, era uma das atividades preferidas da atriz Lu Grimaldi, que chama a atenção no papel da empregada Eleonora de Terra nostra:
 

Minha turma era bagunceira, mas não era do mal. Ao chegar à oitava série, em Porto Alegre, a madre me aconselhou a procurar outra escola. As irmãs não sabiam lidar com a inquietação e desistiram de me moldar. Fui para outra escola e tive oportunidade de canalizar minha energia. Tinha teatro e nos divertíamos nas apresentações.
 

A história de Lu Grimaldi comprova então que muitas vezes a inadequação é que faz com que o aluno seja classificado como indisciplinado. Pode ter sido isso que aconteceu com a atriz e comediante Maria Paula Fidalgo. Aos 12 anos, ela explodiu uma bomba no colégio de freiras Maria Auxiliadora, em Brasília, na hora do recreio. Sapeca, brincalhona e bagunceira, a caçula da família mineira fazia os pais viverem em sobressalto:
 

Aos 14 anos, eles levaram um susto quando me viram com os cabelos tosados e descoloridos. Três anos mais tarde, fui morar em Londres. Meu pai entregou para Deus. Aprontei tantas que minha família não tinha mais nenhuma expectativa em relação a mim. No entanto, tornei-me independente financeiramente aos 19 anos.
 

Agora, escandalizar mesmo era com a cantora Cássia Eller.
 

Dei muito trabalho. Quebrei quase todos os ossos do corpo e quase morri afogada aos dez anos. E isso não foi nada perto do que aprontei na adolescência. No Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, matava aula para beber cerveja, fumava maconha no banheiro, beijava todo mundo e mostrava os seios para os amigos. Também coloquei um rabo de burro num professor e um cartaz de ‘sou viado’ em outro. No fim, abandonei o segundo grau por uma temporada de shows em Brasília.
 

Histórias como essa são comuns e engraçadas. Mas algumas vezes estão no limite entre a traquinagem e o desrespeito. Para Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a diferença está no tipo de atitude. Autor do livro Limites: três dimensões educacionais (Ed. Ática), ele afirma que é preciso estar atento para que a indisciplina não prejudique outras pessoas ou patrimônios coletivos. “A bagunça e a diversão são preocupantes quando faltam valores éticos”, pontua. “Nesses casos a indisciplina pode ser uma reação ao sentimento de exclusão do grupo”, aponta o psicoterapeuta Ari Rehfeld, da Clínica Psicológica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
 

Para alguns, no entanto, o simples questionamento da criança sobre determinado assunto é uma ameaça à autoridade. Mas é bom lembrar que a aceitação cega de normas pode camuflar problemas importantes. “Na obediência contínua pode se esconder a apatia, a indiferença e até uma depressão”, alerta Rehfeld. Para o psicólogo Fernando Becker, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a criança pode expor sua vontade a partir dos quatro anos. “Nessa fase, ela tem condições de dialogar, com oito pode discutir regras de convivência. Dos 12 em diante, deve estar construindo e reconstruindo com os adultos”, ensina.
 

Provavelmente este era o anseio da pré-candidata do PT à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, quando enfrentava as freiras da escola em que estudava, na capital paulista.
 

Certa vez uma educadora me forçou a comer algo que não queria. Não tive dúvidas, comi, mas vomitei tudo em cima dela de propósito. Apesar das notas razoáveis, eu sempre recebia o boletim cinza, símbolo da pior avaliação. Tudo porque não aceitava docemente as regras. Lembro também que inventei que havia um cemitério embaixo do palco do teatro da escola. O terror espalhou-se e ficou todo mundo morrendo de medo.
 

Outra que apresentava o “defeito” de falar demais é a ex-ministra da Administração Federal e Reforma do Estado, Cláudia Costin, 44 anos.
 

Aos 11 anos, quase fiquei sem a festa de aniversário por trazer para casa cinco advertências. Perdi a conta das vezes em que fui parar na diretoria. O que me salvava eram as boas notas. Tive sorte de ter estudado num colégio pouco autoritário. Caso contrário, com certeza os conflitos seriam maiores.
 

A ex-ministra está certa. “O excesso de normas e a intervenção do adulto nas atividades da criança resulta em menos autonomia e mais conflitos”, atesta a pedagoga Telma Vinha, da Universidade de Campinas. Conflitos na escola é exatamente o tema de sua tese de doutorado, na qual analisa quatro escolas das redes pública e privada – duas tradicionais e duas construtivistas. A tese aponta que a condição econômica não contribui para a indisciplina. “O fator que mais intervém é o tipo de relação estabelecida pela criança nos meios em que vive.” O currículo também pode gerar desinteresse.
 

Foi o que aconteceu com o escritor Ignácio de Loyola Brandão, 63 anos. Durante o ginásio, ficava lá atrás, no fundão mesmo, lendo.
 

Detestava as aulas de Química. Sorte que o professor da matéria, o Machadinho, compreendia minha limitação. Ele deixava – eu e minha turma – ler e discutir textos. Mas nas aulas de Filosofia (dadas por um padre) éramos terríveis. Tirávamos as calças e mostrávamos as cuecas. As meninas não ousavam virar os olhos para trás.
 

O apresentador Serginho Groisman, 49 anos, também detestava Química, Física e Biologia e repetiu dois anos.
 

Cansei de enforcar aula para jogar futebol ou assistir a filmes de bangue-bangue. Havia ainda a banca de apostas. Durante a aula, ia fazendo bolas de papel. Os colegas apostavam se eu acertaria as bolas, lá do fundão, no cesto de lixo ao lado do professor. A aula ia passando e a ansiedade aumentando. De repente, aquele barulhão e a classe estourava.
 

Estouro mesmo foi o que aprontou o físico César Lattes. Em 1937, época em que a rigidez escolar era muito maior, Lattes estava na quarta-série de um internato. Ele fez um montinho de pólvora e bateu forte com o pé. A lembrança do episódio ainda hoje, aos 75 anos, o diverte.
 

A explosão soou ensurdecedora pelo pátio do colégio. Levei um puxão de orelha e fui proibido de sair nas férias. Mas eles não me aguentaram. Vi um vazamento do óleo do aquecedor e coloquei fogo no banheiro. Aí me mandaram para casa.
 

As molecagens também trazem aprendizado. É a partir delas que surgem os conflitos. Por incrível que pareça, eles podem ser benéficos. Uma maneira de fazer isso é discutir com a criança as consequências da traquinagem e fazê-la pensar na melhor maneira de consertar a situação. Também são oportunidades para desenvolver talentos. Foi na sala da diretoria de uma escola pública em Porto Alegre, por exemplo, que o diretor presidente da indústria de bebidas Velho Barreiro, César da Costa Rosa, 42 anos, se iniciou na arte da negociação. Um dos episódios protagonizados pela sua turma lembra uma cena de filme pastelão.
 

Iniciamos uma guerrinha de barro numa aula de artes. Um pedaço da massa grudou no teto perto da porta. Em seguida, entra a vice-diretora para dar alguns avisos e pára bem embaixo. Ela falando e o barro se desprendendo lentamente. Começamos a suar frio. Assim que ela fechou a porta, o monte se esborrachou no chão. Nem sempre tínhamos a mesma sorte. E eu era sempre escalado para convencer os adultos de que não éramos maus. Acabava por trocar as punições por serviço. Arrumávamos as redes da escola, carteira, bolas.
O relato mostra que há várias formas de se adequar um indisciplinado. Uma delas é a punição dura e simples. Mas nem sempre é válida. O transgressor, depois de punido, se sente livre para outra estripulia. É como confessar, rezar 300 ave-marias e, absolvido de um pecado, estar pronto para começar de novo. Outra forma é mostrar a utilidade das regras para a boa convivência. O difícil é encontrar o equilíbrio entre a radicalização e a educação “democrática”. A complacência excessiva pode deixar os adolescentes sem referências claras do certo e do errado. “A democracia pressupõe liberdade de escolha para iguais. Não é o caso de crianças e adultos. Os pais ainda são os modelos dos filhos”, lembra o psicólogo Yves De La Taille.