Embaixador do Brasil em Paris revela que foi espionado quando era diretor da Opaq e diz que Prêmio Nobel reconheceu o trabalho da organização em favor da paz

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PELA PAZ
O diplomata José Maurício Bustani afirma que a Síria
já está destruindo seu arsenal de armas químicas

Aos 68 anos, o diplomata José Maurício Bustani teve direito a sua cota pessoal de cumprimentos quando foi anunciado que a Organização para a Proibição de Armas Químicas havia sido agraciada com o Prêmio Nobel da Paz. Fundador e primeiro diretor-geral da Opaq, em 2002 Bustani perdeu o posto como punição por uma atitude exemplar em defesa da paz e do entendimento entre os povos. Convencido de que o Iraque não possuía armas químicas nem representava qualquer ameaça à paz mundial, Bustani recusou-se a abrir caminho para a intervenção americana naquele país, medida que inaugurou uma guerra trágica que marcou a última década. Onze anos depois, em seu posto como embaixador em Paris, Bustani falou à ISTOÉ sobre o Prêmio Nobel da Opaq, as pressões americanas e sobre espionagem eletrônica.  

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"Derrubamos uma parede e encontramos todo tipo de microfone do
outro lado, capaz de captar qualquer conversa, mesmo confidencial”

 

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“O chanceler Celso Lafer disse que teve
reuniões em que o governo dos EUA deixou
claro que queria minha saída da Opaq"

Fotos: Charles Dharapak/ap photo; nelson perez/valor econômico/ag. o globo

ISTOÉ

O sr. ficou surpreso com a espionagem eletrônica da NSA no Brasil, na Alemanha e em outros países?  

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José Maurício Bustani

A tecnologia mudou muito, mas nós sabemos que a espionagem sempre existiu. Em 2002, vivi uma história que pouca gente conhece. Eu era diretor-geral da Opaq e percebi que havia muitos vazamentos em meu gabinete. Fazendo uma varredura, derrubamos uma parede e encontramos todo tipo de microfone do outro lado, capaz de captar qualquer conversa, mesmo confidencial. Coincidência ou não, isso aconteceu meses antes de o governo americano decidir me tirar da direção-geral da Opaq. 

ISTOÉ

Em abril de 2002 o sr. foi afastado da direção da Opaq e, em março de 2003, começou a invasão ao Iraque. O sr. acha que a guerra poderia ter sido impedida se tivesse permanecido na Opaq? 

José Maurício Bustani

Creio que a guerra do Iraque poderia ter sido evitada sim. Nós já tínhamos feito uma inspeção naquele país. Nossos inspetores conheciam o Iraque e haviam tomado parte em missões anteriores. Sabiam o que deveriam procurar. A maior parte das armas químicas já havia sido destruída. As poucas amostras que restaram – era isso mesmo, amostras – foram localizadas e  retiradas do país. Só restaram alguns cientistas, que tinham até conhecimento, mas não tinham meios de construir armas. Ainda havia sanções. Além disso, o Iraque já estava convencido a aderir à Opaq, quando enfrentaria controles permanentes. 

ISTOÉ

Mas o governo George W. Bush não seria capaz de encontrar outro pretexto para a guerra? 

José Maurício Bustani

Mas teriam de encontrar outra explicação. Eu acho que poderia ter acontecido com o Iraque aquilo que está ocorrendo hoje com a Síria. O país aderiu à Opaq e já está destruindo seu arsenal de armas químicas. Pelo que soube, falta eliminar pouca coisa. O significado do Prêmio Nobel para a Opaq é este. Mostrou que a organização pode ajudar a evitar uma guerra. E fico feliz, como primeiro diretor-geral, por ter contribuído para formar essa cultura. 

ISTOÉ


O Prêmio Nobel para a Opaq teve um sabor de vingança? 

José Maurício Bustani

Não. A sensação é de reconhecimento, por uma organização que sempre sofreu com a falta de apoio. A começar pela cidade-sede, Haia, com poucas embaixadas, poucos diplomatas e muitas dificuldades para qualquer atuação mais efetiva em comparação com Genebra, que é o centro diplomático internacional. 

ISTOÉ

Havia má vontade com a Opaq? 

José Maurício Bustani

O que se sabia é que o George Bush, pai, só concordou em combater as armas químicas para atender a um pedido da mãe, que tinha ficado horrorizada com imagens de guerra química, na Primeira Guerra. 

ISTOÉ

Qual é a raiz dessa postura? 

José Maurício Bustani

Uma questão importante era o regulamento. O estatuto da organização contra armas nucleares, por exemplo, protege as potências que já dominam a tecnologia nuclear e possuem artefatos. Na Opaq nós negociamos um regulamento que fazia exigências iguais para todos, grandes ou pequenos. Para entrar na Opaq uma nação precisava concordar com as inspeções e com a destruição de seus arsenais. Ninguém podia ter armas químicas. Também precisava arcar com os custos da destruição, que são altíssimos. Em função dos riscos de propagação de gases, é muito mais barato construir uma arma química do que destruir. 

ISTOÉ


Todos os países costumam obedecer aos acordos que assinam? 

José Maurício Bustani

Calculo que os Estados Unidos ainda tenham 20% de seu arsenal. A Rússia talvez tenha 30%. Mas a maioria destruiu. O problema é que, além dos arsenais militares, é preciso inspecionar a indústria. Porque sempre há o risco de uma fábrica desviar uma parcela de sua produção para fins militares. 

ISTOÉ

Havia algum problema particular com os Estados Unidos? 

José Maurício Bustani

O problema é que eles tinham uma indústria química muito mais avançada do que os outros e é até natural, assim, que resistissem às inspeções. Mas nunca cedi. Sempre exigi que o tratamento deveria ser igual. Todos precisavam se submeter às mesmas inspeções e deveriam destruir seus arsenais. Essa percepção ajudou muito na ampliação e consolidação da organização. Ela passou a funcionar depois que havia atingido um número de 87 países. Em pouco mais de dois anos, já estava com mais de 150 membros. Ninguém tinha medo de ser manipulado politicamente. Isso nos ajudou a tentar resolver a crise com o Iraque. 

ISTOÉ

Por quê? 

José Maurício Bustani

Havia um problema de lealdade em relação aos inspetores internacionais, em especial da ONU. O Iraque não aceitava a presença deles em seu país. 

ISTOÉ

Qual é a razão? 

José Maurício Bustani

Porque os funcionários da ONU não eram funcionários da ONU. Eram pessoas terceirizadas por empresas de outros países. E os iraquianos achavam, muitas vezes com razão, que eles eram mais leais ao país de suas empresas, que pagavam seus salários, do que à própria ONU. Em compensação, eles confiavam na Opaq e aceitaram nossa inspeção. 

ISTOÉ

Como começaram os problemas? 

José Maurício Bustani

As dificuldades surgiram quando recebi a comunicação de que tanto a Líbia quanto o Iraque haviam concordado em aderir à Opaq. Comuniquei a notícia a alguns países mais importantes da organização, como sempre fazia. Logo percebi que a coisa desagradou. Os americanos passaram a dizer que eu havia avançado o sinal, que não poderia ter agido daquela maneira. Mas eu sempre fizera o possível para trazer novos países à organização. Aos poucos, ficou claro que, no caso específico do Iraque, eu estava aparentemente atrapalhando outro plano, o da invasão. Se a adesão se consumasse, ficaria óbvio que o país não tinha mais armas químicas e que aceitava destruir o que tivesse. Não havia argumento para invadir. 

ISTOÉ

Como foi a pressão americana? 

José Maurício Bustani

O (diplomata John) Bolton me deu 24 horas para sair da organização. Respondi que não poderia fazer isso, pois seria equivalente a reconhecer todas as acusações que eles haviam montado contra mim. Ele disse que Washington exigia minha saída e que ele queria fazer isso de uma forma elegante. Ele até disse que poderia me obter um posto importante, se pedisse demissão. Sugeri que nós fossemos ao conselho da organização. Ali discutimos a questão com representantes de outros países e o conselho me apoiou. Depois disso não havia outro fórum legal para levantar o assunto. Então eles fizeram uma manobra para convocar uma conferência política, que não era prevista pelo estatuto. Eles mobilizaram todos os países ocidentais e outros aliados contra minha posição. 

ISTOÉ

Por que a França não votou com os Estados Unidos?  

José Maurício Bustani

Naquele momento, 2002, também estava em curso a campanha presidencial no Brasil. Lula passou por Paris, onde se reuniu com o chanceler Hubert Vedrine, socialista, num governo em coabitação com Jacques Chirac. Lula fez gestões pela minha permanência e os franceses nos apoiaram. 

ISTOÉ

Como o governo brasileiro se comportou? 

José Maurício Bustani

O governo brasileiro votou em meu nome, mas nada fez para fortalecer a candidatura. Não mobilizou aliados na América Latina, na Ásia e na África. Se tivesse feito isso, o resultado poderia ter sido outro. Perdi para as abstenções. Foram 48 votos contra Bustani, 7 a favor, 43 abstenções. A Rússia votou a meu favor, a China também. Além de Cuba, na América Latina o México foi o único que me apoiou. O chanceler mexicano já tinha sido vítima de uma operação semelhante do governo americano. Sentiu na própria pele uma ação de Washington e decidiu me apoiar. 

ISTOÉ

Como avalia a postura do Itamaraty? 

José Maurício Bustani

O voto brasileiro deu a impressão de que havia alguma reserva a meu nome. Eu não tenho explicação, mesmo porque até hoje não me disseram nada. O chanceler (ex-ministro Celso Lafer), que mal conheço, jamais me disse alguma coisa. Outro dia, numa entrevista ao “The New York Times”, ele disse que teve reuniões em que o governo dos Estados Unidos deixou claro que queria minha saída. Foi a primeira vez na história que se destituiu um diretor de um organismo internacional daquela forma. Foi tão absurdo que recorri à Organização Internacional do Trabalho e um ano depois obtive uma indenização, que doei integralmente aos trabalhos de cooperação técnica da Opaq. Mas fui banido pelo governo brasileiro. Fiquei à margem de qualquer posto diplomático por um ano. Tive até problemas para morar. 

ISTOÉ

Por quê? 

José Maurício Bustani

O governo da Holanda, em apoio ao governo americano, cancelou meu visto diplomático. Minha mulher tinha um posto em nossa embaixada e eu só poderia continuar morando no país se declarasse que seria doméstico na casa dela. Não faria isso.  

ISTOÉ

Como embaixador em Paris, hoje, o sr. considera que Brasil e França vivem um bom momento? 

José Maurício Bustani

Os dois países têm uma grande aproximação, que se iniciou no governo Lula e prosseguiu com a presidenta Dilma. Existem 600 empresas francesas no Brasil. A maior rede de supermercados brasileira é francesa, a Casino. A maior fornecedora de energia também. Vivemos num mundo de grande avanço e disputas tecnológicas, onde é preciso encontrar parceiros que nos ajudem a queimar etapas e dar saltos. A França pode ser este país. 

ISTOÉ

De que maneira a França pode nos ajudar? 

José Maurício Bustani

Os franceses possuem pesquisas tecnológicas importantes, desenvolvidas a partir de uma perspectiva própria. E, é claro, possui uma indústria militar importante. 


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