Carlos Reichenbach tem na memória o período em que seu padrinho passou dias dolorosos escondido na casa de campo de seus pais, à beira da represa Billings, em São Paulo, fugindo dos agentes do governo que assombravam os militantes de esquerda. Esta inspiração direta se transformou no mote principal que rege seu 12º longa-metragem, o belíssimo Dois córregos, verdades submersas no tempo (em cartaz em Porto Alegre, e em São Paulo a partir da sexta-feira 27), um filme que, sem dúvida, marca novos rumos na carreira do cineasta paulista nascido em Porto Alegre. Ainda usando a política como tema, mas sem estar rançosamente preso a ela como no datado Alma corsária, de 1993/94, Reichenbach construiu uma história na qual alguns dos princípios básicos da existência como a relação familiar, o desejo, o amor pelos filhos e a curiosidade pela descoberta da vida unem-se de forma cruel ou poética.

No bolsão de lembranças, Ana Paula (Beth Goulart) vai ao interior de São Paulo, mais precisamente à graciosa cidade de Dois Córregos, recuperar a casa de campo herdada dos pais, agora ocupada por grileiros. Enquanto assiste constrangida ao despejo, começa a recordar os dias da sua adolescência, que passou no local junto à amiga Lydia (Luciana Brasil), filha de um general da pesada, tão preconceituosa quanto o pai caçador de comunistas. A Ana Paula jovem, interpretada por Vanessa Goulart, sobrinha de Beth, é uma adolescente tipicamente inocente dos anos 60, indiferente aos acontecimentos políticos que massacravam o País. Na pequena cidade com sua estação de trem, a ação se desenvolve em torno das duas jovens e do misterioso Hermes (Carlos Alberto Riccelli), o tio militante que se esconde da polícia e se corrói de saudades dos filhos deixados no Rio Grande do Sul.

Para costurar a ligação entre estes personagens, há Teresa – muito bem interpretada por Ingra Liberato –, mulher amarga, prestes a descobrir a verdadeira paixão. A dança entre eles, planejada pela câmera clássica de Carlos Reichenbach, traz à tona sentimentos nobres, angústias e medos desenvolvidos sob uma trilha sonora de primeiríssima qualidade assinada por Ivan Lins. A trilha, que contou com arranjos e produção musical de Nelson Ayres, é também moldura perfeita para Carlão, como é chamado no meio cinematográfico, exibir gente bonita na tela, uma opção de guinada à direita do que ele vinha fazendo em seus últimos filmes nos quais a pobreza e a feiúra eram incômodos propositais. A subversão pela "generosidade obscena" – como ele próprio define – de alguns de seus personagens agora mereceu a afetividade devida.