Teve muita gente que saiu com a roupa respingada de sangue de fígado de boi. Algumas ficaram enojadas, outras completamente destemperadas com a atitude e com a peça que tinham acabado de assistir. Afinal, era um texto assinado por um compositor jovem, bonito, de cativante timidez exposta nos decantados olhos verdes-água, chamado Chico Buarque de Hollanda. Quem mostrou o lado bad boy de Chico foi o diretor José Celso Martinez Corrêa, que, em 1968, com o espetáculo Roda viva, virou o teatro brasileiro do avesso. O público amava ou detestava, só não saía indiferente, mesmo sem ter entendido nada. Para os atores tudo era uma festa engajada, feita para conscientizar o mundo burguês, na expressão da época. Uma das protagonistas, no entanto, vinda do Rio de Janeiro, onde a peça já havia causado rebuliço, chegou a São Paulo para substituir Marieta Severo sem ter idéia do que tudo aquilo representava. Era Marília Pêra. Assim que entrou no Teatro Galpão, toda perfumada, usando meias de seda e sapato de salto alto, o ensaio de Roda viva já corria solto. Levou um susto ao ver as pessoas no chão, se esfregando umas nas outras, simulando relações sexuais. Zé Celso colocou o texto na mão de Marília, a mandou deitar de costas para a platéia, com as pernas abertas, enquanto o ator Antônio Pedro sobre ela fingia a prática do sexo oral. Estupefata, olhando para aquela língua ávida, a atriz carioca pensou: "Meu Deus, onde é que eu vim parar?"

Décadas depois, Marília relembra a história com bom humor. Esta e muitas outras estão registradas na autobiografia Vissi d’arte50 anos vividos para arte (Escrituras, 398 págs., R$ 39,80), escrita em parceria com o autor Flavio de Souza, que chega às livrarias nesta semana. O lançamento coincide com um momento extremamente profícuo da aclamada carreira da cidadã Marília Soares Pêra da Graça Mello – seu nome oficial –, hoje com 56 anos, uma atriz que mesmo antes de nascer, na barriga da mãe, Dinorah Marzullo, também atriz, recebia a descarga de adrenalina de quem se exibe diante do público. Na sequência de eventos artísticos, dia 2 de setembro Marília Pêra estréia Além da linha d’água, do coreógrafo e encenador Ivaldo Bertazzo, que ficará em cartaz por três semanas no Sesc Pompéia, em São Paulo, espetáculo no qual vive uma poeta nordestina. Para a segunda quinzena do mesmo mês está previsto o lançamento, também na capital paulista, do filme O viajante, de Paulo Cezar Sarraceni, em que encarna uma viúva às voltas com o vulcão erótico guardado dentro de si. Em outubro, ela retoma a excursão da peça O altar do incenso, que atua em parceria com Gracindo Junior, passando por Santos, Belo Horizonte, Goiânia e Brasília, com planos de ir ao Nordeste, aportando em janeiro no Rio. No texto de Wilson Sayão, Marília e Gracindo são Rebeca e Isaque, casal de classe média enredado pela monotonia de um casamento sem emoções.

Só no palco, porque emoções não faltaram à vida de Marília Pêra, considerada uma das melhores atrizes brasileiras, famosa pela tenacidade, coragem e, muitas vezes, até ingenuidade com que construiu sua carreira sempre cheia de superlativos, mesmo em espetáculos que o público não aprovou. O título escolhido para batizar sua autobiografia define todas suas intenções. Foi tirado de um trecho da ária da ópera Tosca, de Giacomo Puccini, libreto de Giuseppe Giacosa e Luigi Illica, em que diz: "Vissi d’arte, vissi d’amore. Non feci mai male ad anima viva!" (Vivi de arte, vivi de amor. Nunca fiz mal a nenhuma criatura viva). "Incorporei muitas vidas, muitos jeitos que não eram meus, afirmei coisas que não eram verdades minhas, disse mentiras que não eram as minhas mentiras. Acredito e espero que tenha pego desses personagens o melhor e que venha tentando jogar fora o pior de cada um deles", pontuou Marília sobre a amálgama de seres entronizados na sua personalidade, durante a longa entrevista concedida a ISTOÉ, em seu apartamento tríplex, na zona sul carioca.

Sem fofocas – Para organizar todo esse mundo trazido à tona em 42 peças e musicais, 17 filmes, 16 novelas e quatro minisséries, Flavio de Souza – co-autor da cultuada série infantil Castelo Rá-tim-bum, ex-redator do humorístico Sai de baixo e autor de peças como Fica comigo esta noite –, ao longo de nove domingos, gravou de três a quatro horas de fitas que renderam 400 páginas transcritas. "Antes de iniciarmos as sessões, ela só me pediu que o livro não ficasse fininho e que fosse divertido, gostoso de ler, mas contando as partes chatas e tristes da sua carreira", diz Flavio Souza. Só que o leitor não deve esperar uma biografia lotada de lances picantes ou deliciosas invasões de privacidade, principalmente em relação à constelação de astros da qual Marília sempre esteve integrada desde o berço quando, com 19 dias de vida, "atuou" como bebê numa peça protagonizada pela lendária Henriette Morineau, em 1943. A justificativa é a de que foi "por respeito" às pessoas envolvidas e não por pudor. Entre vários fatos que vão coçar o leitor de curiosidade, por exemplo, encontra-se a misteriosa quebra da amizade com Marco Nanini, um nome encontrável em todo o livro, mas que desaparece no tachado momento em que se fala do sucesso da peça O mistério de Irma Vap, que ele fez ao lado de Ney Latorraca. "Tivemos uma relação, pelo menos do meu lado, muito profunda, muito rica, muito criativa, muito engraçada. A vida nos afastou e seria antiético contar o que realmente aconteceu quando, na verdade, nem eu sei direito."

Flavio de Souza, por sua vez, afirma que nunca teve a pretensão de fazer um trabalho essencialmente jornalístico. "Eu lidei com um material tirado sob o ponto de vista dela." Há, porém, um fato esclarecedor como a polêmica em torno do apoio à candidatura de Fernando Collor de Mello à Presidência da República, em 1989. À época muita gente estranhou, principalmente a classe artística, ver a atriz – aquela com um passado ligeiramente escrito sob a égide da esquerda, que trabalhou em Roda viva, sofreu nas mãos dos integrantes do Comando de Caça aos Comunistas que, em 1968, invadiram o Teatro Galpão, quebraram cenários, poltronas e espancaram atores e técnicos – apoiando Collor em rede nacional. Militantes petistas e outros tantos não a perdoaram. "Para mim, esquerda sempre quis dizer humanismo, com todo mundo tendo educação, saúde, alimentação, direito à sua casa, à sua terra", enfatiza Marília. "Quando veio a possibilidade de votar pela primeira vez para presidente da República, eu achei que ser de esquerda era também poder votar em quem eu quisesse. Achei que o Collor poderia mudar o País, eu e 35 milhões de brasileiros. Mas ele tinha de ter aberto o campo para a cultura brasileira. Um estadista teria feito isso. Ali ele me ceifou. Não me arrependi de ter votado nele, mas esse foi um desapontamento grande. No entanto, não vejo que o Brasil esteja caminhando tão maravilhosamente depois do impeachment do Collor."

Lições – O episódio deixou a atriz em completo desassossego. Patrulhamento ideológico, tanto de esquerda como de direita, é assim. Mal sabia que a resposta estaria numa frase de Bertolt Brecht, hoje citada por ela: "O que foi espancado não pode escapar da sabedoria. Tenha medo, sim, mas mergulhe porque no fundo a lição lhe aguarda." Muitas outras lições, só que artísticas, Marília ganhou do pai, Manuel Pêra, um imigrante português, já falecido, que por volta dos 16 anos se tornou ator, e da mãe, Dinorah, descendente de italianos calabreses, atualmente com 80 anos. Com o incentivo paterno pôde estudar balé, piano, mais tarde o canto. Até hoje faz aulas de canto e tem uma relação direta com a dança. Da mãe herdou o chamado sangue quente, que levou muitos colegas do meio artístico a caracterizar como gênio ruim. "Tenho uma intolerância, uma ansiedade que venho domando depois que comecei a ler livros indianos sobre a medicina ayurvédica." Quando foi fazer um teste deste tipo milenar de medicina, deu que seu sangue era tão quente que hoje Marília toma chás para acalmar o temperamento, faz meditação e respiração para não ficar irritada. O resultado é visível.

Estar diante de Marília Pêra, pelo menos em situações específicas, é presenciar uma mulher de extremo senso profissional, que não se altera nem mesmo quando o assunto a incomoda, que mantém o mesmo tom delicado de voz para descrever situações incômodas ou divertidas, que guarda uma ironia fina na colocação das frases. Marília Pêra é daquelas pessoas – o desafio do palco lhe incutiu – que nunca desviam os olhos do interlocutor. O cansaço ou a impaciência são sutilmente traduzidos no rosto, que em segundos lhe trai, transformando totalmente a expressão antes suave. A diferença é drástica. Sua postura tem uma aparência nobre. Hoje ela sabe, Ivaldo Bertazzo a ensinou, que é mais elegante estar ereta. Marília Pêra anda ereta, suas mãos de dedos longos pousam macias e leves sobre a mesa. Matinalmente segue cinco ritos tibetanos. Dá 21 giros em torno de si, faz 21 alongamentos para a frente, 21 para trás. "Eles usam o 21 para tudo, é um número da sorte."

 

Diva – Não é para menos que este conjunto de situações lhe deu o status de diva. Como a que ela magistralmente interpretou em Master class, peça sobre a grande Maria Callas. É quando fala da soprano americana de origem grega, aliás, que vem seu melhor conceito sobre o ego do ator. "Dizem que a Callas parou de cantar porque feriram de tal forma o ego da diva, que ela nunca mais teve força para manter o diafragma e alcançar notas muito agudas", conta. "O artista precisa ter ego, senão não entra em cena. Mas um ego muito exacerbado o faz ficar parecendo um bobo da corte. O bonito do jogo cênico é jogar junto, não sair na frente dizendo: ‘Olha eu, olha eu, eu, eu, eu.’ Vejo muito em programas de televisão, em espetáculos também, atores maravilhosos, comediantes maravilhosos, que realmente ignoram quem está em cena com eles e vão ali para a frente e você rola de rir. Eu rolo de rir, mas não respeito. Respeito a troca", determina. "Hoje em dia não piso no palco para ser amada e sim para amar."

Com tanta determinação é de se pensar que a experiência de mais de 50 anos de carreira pode ter automatizado seu trabalho de atriz. Pois até hoje, Marília fica gélida dos pés à cabeça antes de entrar em cena. "No palco eu estou sempre entre o gozo e a morte. O fato de ficar gelada não me paralisa, não, mas alguma coisa incorpora e eu tenho medo." Um medo, diga-se, bem diferente do que ela enfrentou em 1970, ocasião em que um de seus amigos lhe apresentou maconha e ela escondeu dentro de um cubo na sala de seu apartamento em São Paulo. A polícia veio atrás de drogas por causa da peça A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, encenada no Teatro São Pedro, que fazia alusão ao assunto. Acabaram não encontrando nada, nem o cubo. Além da sua casa invadiram as de seus grandes amigos Zezé Motta e André Valli, que ficavam na mesma esquina. "Fui presa nesta noite e, dentro do carro, o delegado me disse: ‘A senhora está sentada no mesmo assento que mataram o Marighella.’ Eu era uma atriz de esquerda na época, tinha até um pouquinho de maconha em casa", ironiza.

 

Cacilda! – A dupla de amigos é de longa data. Zezé Motta, por exemplo, conheceu a intérprete da divertida Rafaela da novela global Brega e chique, de 1987, quando fazia Roda viva, em São Paulo. José Celso Martinez Corrêa lembra que todo mundo se dava tão bem, dentro e fora do espetáculo, que de brincadeira fundaram a C.U., Companhia Utópica, "onde todos estavam apaixonados". "Era um aquário em que Marília nadava muito bem", conta Zé Celso. Se depender do diretor, o encontro apaixonado com ele e sua nova trupe pode acontecer num futuro breve. Zé Celso a quer atuando em Cacilda!!, continuação de Cacilda! – a peça chegará na quarta edição, com quatro exclamações –, baseada na vida da atriz antológica. "Será sobre a fase em que Cacilda Becker trabalhou em musicais. Acho que Marília Pêra faria magistralmente bem." Desta vez, espera-se que nenhum comando de caça aos comunistas ou aos direitistas queira lançá-la à fogueira.