Ela tinha o status de prima pobre do presunto. Chegou no Brasil praticamente junto com a bagagem da italianada imigrante e descamisada. E só quem não tinha um gato para puxar pelo rabo é que a colocava no pão. O presidente Jânio Quadros usava como estratégia sacar um sanduíche com fatias finas do bolso, em meio a disscursos, para mostrar como "pertencia" às classes menos favorecidas. Pois agora, justamente valorizando sua origem popular, é que a mortadela está sendo alçada à primeira-dama da mesa. "Os ingredientes têm de ser respeitados. A mortadela tem essa característica caseira, portanto tem de estar em pratos sem muita elaboração", acredita Wilma Kövesi, dona de uma escola de cozinha e autora do surpreendente O livro da mortadela, com 40 receitas. Tudo bem que a mortadela não pode ser abraçada pela cozinha francesa sem restrições. Mas muitos chefs estão despertando para seu potencial como já se encantaram anteriormente com o presunto cru. "É engraçado como a gastronomia em São Paulo é feita de ondas. Foi o presunto cru, a mussarela de búfala, o tomate seco e agora parece ser a vez da mortadela. Com um detalhe: por ser um ingrediente popular, também vai pegar em outros lugares", analisa o chef Alex Atala, do restaurante Namesa.

Ninguém pretende dar à mortadela um ar falsamente refinado. O que Atala e mais três chefs querem mostrar é como o embutido pode ser flexível e extrapolar o restrito papel de entrada, ou o de melhor amigo do pão francês. Assim, conceberam pratos que vão ilustrar essa nova corrente pró-mortadela para um festival que acontece de 23 a 26 de agosto, em São Paulo. "Ela não é tão neutra quanto o presunto. A mortadela tem personalidade, mas combina com quase tudo. Em especial com adocicados, perfumados e cítricos", acredita Wilma, que preparou um gratinado de batata com o acepipe para a ocasião. A chef Ana Soares apostou em um capelete recheado acompanhado de molho de limão, Atala em um inacreditável peixe com mortadela e Carlos Siffert em um risoto. O cenário do evento, o bar Original, segundo os participantes, é o mais fiel possível à alma da mortadela. "Queríamos trazer a alta gastronomia para o boteco e a mortadela é o passaporte que une os dois mundos", explica Sérgio Camargo, um dos sócios do bar.

A ascensão da mortadela supera o universo paulistano. Dos balcões dos botequins cariocas, ela chega também à mesa com talheres. No I Encontro Piraquê de Gastronomia, em Correias, região serrana do Rio de Janeiro, há dois fins de semana, um prato à base de mortadela do publicitário Luis Vieira surpreendeu. Convidado a participar como chef amador ao lado de feras do Rio e de São Paulo, ele ofereceu uma receita bem simplezinha tendo como estrela o embutido. "As pessoas comeram loucamente. Todo mundo ficou inventando coisas sofisticadas e eu fiz um espaguete com mortadela." Nos jantares sofisticados que oferece em sua casa, inventa sempre alguma coisa com mortadela, como salada fria com penne, tirinhas de pimentão, roquefort, azeite e sal. "As pessoas finas que vêm aos jantares acham ousadíssimo porque mortadela sempre foi uma coisa muito popular", diverte-se.

A mortadela surgiu na Itália, ainda no século XIV, na região da Bolonha. Sua receita clássica leva carnes de porco e bovina, cubos de gordura e temperos. Com o tempo, foram-se agregando azeitonas e pistache à sua fórmula. Apesar de não ser um ingrediente requisitado pela culinária internacional, a mortadela galgou seu espaço na cozinha doméstica. Um exemplo é o irredutível molho à bolonhesa, que tinha em sua receita original mortadela moída. Assim, criar com mortadela não foi, nem será, privilégio de profissionais. Do sandubão à macarronada de domingo, qualquer um pode ser chef ao usá-la.

Colaborou Valéria Propato

 

 

Cuscuz com mortadela, frango e pimentão
Receita de Wilma Kövesi

 

Ingredientes
200 gramas de mortadela em tiras
pimentão vermelho e amarelo sem pele, também em tiras
15 ovos de codorna cozidos
1 cebola grande ralada
1 dente de alho picado
1/2 xícara de azeite
2 latas de tomates pelados italianos ou 500 gramas de polpa
1 1/2 pimentão vermelho picado
500 gramas de peito de frango picado
1 1/2 xícara de palmito em pedaços grandes
1/2 xícara de milho verde cozido
1 xícara de ervilha congelada
2 1/2 xícaras de farinha de milho em flocos
1/2 xícara de farinha de mandioca torrada
sal

 

Preparo:
1) Unte uma forma com buraco no meio com óleo e disponha as tiras de mortadela intercaladas com as de pimentão. Distribua os ovos no fundo. Reserve.

2) Refoque a cebola e o alho no azeite. Junte o tomate e o pimentão e faça um refogado bem espesso. Acrescente o frango e cozinhe em fogo baixo.

3) Retire do fogo e corte o frango em pedaços grandes. Junte o palmito, o milho, a ervilha e as farinhas ao refogado ainda morno. Tempere com sal. Se necessário, adicione mais azeite.

4) Disponha desse refogado na forma, apertando bem.

5) Para servir, aqueça sobre o vapor e desenforme.

 

Peixe grelhado com mortadela
Receita de Alex Atala

 

Ingredientes
4 filés de Saint Pierre com escamas
4 tiras de mortadela
2 maços de escarola
100 gramas de uvas passas
2 cebolas roxas pequenas
100 gramas de pinoli
250 ml de azeite
óleo de canola o quanto baste
1 colher de sopa de extrato de tomate
300 ml de vinagre balsâmico
sal e pimenta

 

Preparo:
1) Numa frigideira antiaderente, grelhe as tiras de mortadela até que dourem e fiquem crocantes. Reserve-as.

2) Utilize a mesma frigideira para grelhar os filés, dessa vez com óleo de canola. Frite os filés com as escamas para baixo até quase o cozimento. Depois vire-os só para finalizar.

3) Numa caçarola doure os pinolis. Coloque parte do azeite e refogue as uvas passas e a cebola. Por fim, junte a escarola

4) Evapore o vinagre a 1/4 da quantidade inicial.

5) Numa caçarola em fogo baixo, aqueça 200 ml de azeite com uma colher de extrato de tomate. Cozinhe até o azeite tomar a tonalidade alaranjada.

6) Sirva o filé por cima do refogado, com a mortadela e decore o prato com o vinagre e o azeite com extrato de tomate.