Surpresas acontecem o tempo todo em medicina. E uma do tipo desagradável incomoda médicos, pacientes e pesquisadores de Aids. Cerca de metade dos doentes que tomam o coquetel de drogas anti-HIV (o vírus causador da doença) não está respondendo ao tratamento como deveria. Ou seja, neles, os remédios não estão destruindo o vírus até um ponto em que ele pode ser controlado. A triste estatística é um fenômeno mundial. Na Suíça, por exemplo, um estudo com 2.500 pacientes mostrou que 50% deles tiveram falha em algum momento do tratamento. No Brasil, uma pesquisa recente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenada pelo virologista Ricardo Diaz, apontou que, dos 1.439 pacientes em tratamento com o coquetel, 69,2% estão com a quantidade de HIV no sangue detectável. Quando o coquetel funciona bem, a carga viral se torna indetectável. Em Santos, no litoral paulista, a situação é ainda pior. O número de pacientes tratados com o coquetel, mas com carga viral elevada, beira os 80%.

 

Causas – As causas dessa falência variam. Em alguns casos, o remédio não é bem absorvido pelo organismo do paciente. Em outros, o vírus é mais agressivo do que o normal e resiste às drogas. "Há ainda soropositivos que fazem uso concomitantemente de medicamentos não compatíveis com os anti-retrovirais. Remédios para o coração e calmantes, por exemplo, reduzem a eficácia do coquetel", lembra o infectologista Michal Gejer, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, de São Paulo. O motivo mais frequente da falha terapêutica, contudo, é o uso inadequado da medicação pelo paciente. Reduz-se por conta própria o número de comprimidos prescritos (de 4 a 18 por dia, dependendo da combinação de drogas), seja porque os efeitos colaterais (vômitos, diarréia, gastrite) são intensos, seja porque o paciente não entendeu a receita médica. O problema é que tomar o coquetel sem continuidade aumenta o risco de se criar um HIV resistente, mais difícil de controlar.

Por isso, o que pode acontecer é um enigma. A hipótese otimista é a de que, apesar de o vírus resistente ser de difícil combate com as drogas atuais, talvez ele tenha menor capacidade de multiplicação. "Além disso, temos 15 drogas para combater o vírus e fórmulas mais potentes surgirão", diz o infectologista Eduardo Sprinz, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre. Na corrente pessimista estão os cientistas preocupados com a possibilidade de surgir um vírus tão arisco às drogas que se caminhe para uma catástrofe virológica. "Pode chegar um momento em que existam pacientes vivendo na era pré-AZT (primeiro remédio contra o vírus da Aids), quando nada era eficaz", diz o infectologista David Lewi, da Unifesp. Todos, no entanto, concordam que não se pode subestimar a resistência do vírus.

No consultório do infectologista Caio Rosenthal, por exemplo, de cada cinco pacientes, pelo menos um já desenvolveu resistência ao coquetel tradicional. Quando a resistência ocorre, o especialista ainda pode trocar as drogas mais duas vezes. "Depois a estratégia é usar "megacoquetéis" que misturam até seis drogas", explica Rosenthal. Roberto, 37 anos, que prefere não revelar seu nome verdadeiro, sabe o que a resistência do vírus provoca. Por não levar o tratamento a sério, ele teve tromboflebite (grave inflamação da parede dos vasos sanguíneos), derrame e herpes-zóster (infecção dos nervos do tórax ou dos membros que aparece sobre a pele na forma de pequenas bolhas). "Fiquei um ano tomando duas doses por dia e o recomendado eram três", conta. Empenhado em zerar sua carga viral, há dois meses Roberto iniciou um esquema de tratamento com 22 comprimidos. "Quando a gente queima o tratamento tradicional, não tem volta", lamenta.

Alternativa – Alguns pacientes estavam sem alternativa de tratamento até junho, quando aconteceu o II Congresso Internacional de Resistência do HIV no Canadá. No encontro, a médica alemã Verônika Miller, da Universidade de Frankfurt, apresentou um estudo chamado de "drug holidays", ou férias da medicação. Ela suspendeu o tratamento de 39 pacientes que tomavam até oito drogas e não conseguiam combater o vírus. No final de três meses, em 30 deles os vírus resistentes haviam voltado para sua forma básica, sensível às drogas. A hipótese que explicaria o fenômeno é a de que, sem a ameaça do medicamento, o vírus retomaria sua forma original, mais fácil para se multiplicar. O laboratório de retrovirologia da Unifesp aguarda a aprovação do comitê de ética da universidade para repetir o projeto no País.

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Campanha – Para evitar a progressão de vírus resistentes, uma das medidas é aumentar a adesão do paciente ao tratamento. O Ministério da Saúde lançará, em breve, uma campanha direcionada a pacientes de baixo nível cultural, que têm maior dificuldade de entender como é importante a fidelidade ao tratamento. O argumento mais forte é o de que, nas condições certas, o tratamento com o coquetel tem até 90% de chances de sucesso. "Depois que o coquetel foi introduzido na rede pública, em 1996, a mortalidade de Aids caiu 50%", informa o infectologista José Valdez Madruga, do Centro de Referência e Tratamento de Aids (CRT), de São Paulo. A situação pode ficar melhor se a relação médico-paciente for fortalecida. Ela desfaz dúvidas e tabus. "Não tomava o coquetel nos finais de semana porque queria beber e achava que o álcool anulava o efeito do remédio. Também não tomava os comprimidos da tarde porque nunca estava em casa e não aceitava a idéia de ter de carregá-los comigo", diz Marcelo, 39 anos (nome fictício). Agora, seu médico montou um esquema em que ele toma os comprimidos de manhã e à noite e a adesão aumentou.

Na luta por melhores resultados, surgem aliados. Um deles é o teste de resistência aos anti-retrovirais. Por meio desse método é possível saber a que drogas o vírus resistente ainda é sensível. Outra forma de monitorar a resistência viral será a implantação até o final do ano na rede pública de uma cadeia de laboratórios que estudará, por meio dos exames de sangue de pacientes recém-infectados, o tipo de vírus que eles receberam. "A finalidade é quantificar quantos pacientes já foram contaminados com vírus resistentes e à qual tipo de droga", explica o coordenador do projeto Amilcar Tanuri, virologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Drogas – Também devem chegar ao Brasil duas drogas, a PMPA e a PMEA, para combater o vírus que se tornou resistente ao AZT e a outro remédio, o 3TC, juntos. A indústria farmacêutica também batalha para criar um coquetel prático – o esquema de drogas mais simples tem quatro comprimidos. Enquanto isso não acontece, a responsabilidade de cada um responderá pelo futuro. Portador do vírus há 14 anos, o psicólogo Jean Carlos Dantas, 31 anos, é fiel ao tratamento somente desde o ano passado. "Precisei amadurecer para aceitar a doença e o remédio. Agora, encaro o vírus como uma neurose a mais na vida, assim como a falta de sexo e de amor. Aprendi a conviver com tudo isso", conta. Ele, agora, trabalha no Gapa, e usa sua experiência para convencer novos pacientes a cuidar melhor de si mesmos. "Quando vi minha carga viral explodir, resolvi aderir não só ao medicamento, mas à vida", diz.


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