Os tiranos têm a tentação de reescrever a história de seus países maquilando fatos que ameacem o pressuposto de que foram guias geniais e infalíveis. O ditador soviético Josef Stálin, por exemplo, que teve participação medíocre na tomada do poder pelos bolcheviques na Revolução de Outubro de 1917, aparecia na história oficial da URSS como tendo sido o braço direito do líder revolucionário Vladimir Lênin. Já o general Augusto Pinochet, ao ser nomeado comandante do Exército do Chile pelo presidente Salvador Allende, em agosto de 1973, prometeu "sacrificar a própria vida" para defender o governo constitucional. Poucos dias depois, liderou um sangrento golpe de Estado contra Allende e se tornou senhor absoluto do Chile por 17 anos. Impossibilitado de reescrever a história chilena, o ex-ditador pode ao menos apagar de sua memória pessoal fatos tão desagradáveis como este, que mostram um militar pusilânime a ponto de trair seu juramento à Constituição pela desmedida ambição de poder. Na quarta-feira 16, a imprensa espanhola vazou um relatório de uma junta médica britânica que examinou o general em janeiro passado. Segundo os peritos, Pinochet, 84 anos, sofreu nos últimos meses danos cerebrais que provocam lapsos de memória, o que o impossibilita de enfrentar um julgamento. "Sua memória de fatos remotos está muito prejudicada. Ele teria dificuldades para fazer-se ouvir e compreender perguntas", diz o relatório.

O ex-ditador e senador vitalício chileno está detido em Londres desde outubro de 1998, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, que o acusa de "terrorismo, sequestro e tortura", e aguarda decisão do governo britânico sobre sua extradição para a Espanha. Com base neste documento médico até então sigiloso, o ministro do Interior britânico, Jack Straw, havia manifestado há duas semanas a intenção de libertar o ex-ditador por "razões humanitárias". Straw, no entanto, recusara-se a revelar o conteúdo do relatório aos outros países que, além da Espanha, pedem a extradição do general – Bélgica, França e Suíça -, alegando que Pinochet tinha direito ao sigilo médico. Mas, na terça-feira 15, respondendo a um questionamento da Bélgica, a Alta Corte britânica determinou que cópias do documento fossem enviadas aos quatro países com a condição de que não fossem tornadas públicas.

O vazamento do relatório médico pelos jornais espanhóis ABC e El Mundo provocou desta vez reações bem mais amplas do que as já tradicionais manifestações de partidários e opositores de Pinochet nas ruas de Londres e Santiago, que ocorrem a cada capítulo dessa novela chilena. O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de oposição, acusou o governo do primeiro-ministro conservador José María Aznar de vazar deliberadamente a informação para dois jornais governistas, porque tem interesse em evitar a extradição de Pinochet. Para o general, que não pode pedir aos chilenos que o esqueçam, resta o consolo de poder mergulhar na bruma de sua memória vã.