A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia-verdade. E a segunda metade voltava igualmente com meio perfil E os meios perfis não coincidiam.

Essas primeiras estrofes do poema Verdade, de Carlos Drummond de Andrade, encaixam-se como uma luva numa das mais controvertidas personagens da história: Helene Bertha Amalie Riefenstahl, ou simplesmente, Leni Riefenstahl. Aclamada como uma das mais brilhantes cineastas e atrizes deste século e a preferida de Adolf Hitler, ela ressurge em mais uma das suas infindáveis polêmicas numa vida já bastante conturbada. Durante 50 anos, a imagem de Leni – que surgiu no cenário artístico como dançarina em 1923 – ficou maculada como a cineasta do III Reich. Porém, a mulher que teve sua beleza comparada à de Greta Garbo sempre respondeu às ásperas críticas de colaboracionismo com o regime nazista e aos boatos de que foi amante de Hitler com uma suspeita ingenuidade. "Nunca matei ninguém, nunca desejei mal a ninguém. A única coisa que sempre quis foi poder filmar", afirmou ela.

Mesmo sem nunca ter sido membro do Partido Nacional Socialista, são dela os impecáveis documentários Triunfo da vontade (1935) e Olympia (1936), encomendados pessoalmente por Hitler. Nessas películas realizadas com maestria e técnicas avançadas para a época, estão registradas as mais perfeitas imagens do Führer, que filmado do chão desponta na tela como um semideus. A célebre marcha dos soldados carregando bandeiras nazistas, por exemplo, infiltrou-se no inconsciente de um público que se arrepia até hoje ao deparar-se com essa gigantesca peça da propaganda nazista.

No meio da confusão
Aos 97 anos, a apaixonada e irreverente diretora de filmes está novamente envolvida numa polêmica de mais um regime totalitário. Transgredindo avisos de agentes humanitários, Leni deixou sua casa na Alemanha e embarcou para Rekha, nas montanhas no Sul do Sudão. Foi decidida a registrar as atrocidades sofridas pela tribo dos núbios, fotografada e filmada por ela nos anos 60. Os núbios são os primeiros habitantes do Sudão e encontram-se em meio à guerra entre o governo islâmico de Cartum e os rebeldes sulistas cristãos do Exército da Libertação do Povo Sudanês (ELPS). Em poucas palavras, é o Norte muçulmano lutando contra o Sul cristão, com uma tribo bem no meio dessa confusão. Os núbios (cerca de 250 mil) vivem espalhados por vilarejos agrícolas, organizados em clãs. Eles refugiaram-se nas montanhas quando chegaram os colonizadores britânicos. A maior parte dos núbios é muçulmana ou aceita que a Sharia – lei islâmica – regule suas vidas. Porém, os núbios que habitam o Sul das montanhas não se converteram ao islamismo. Eles continuam com suas tradições centenárias e suas atividades pagãs, com cerimônias de adoração às divindades animistas. Porém, o governo islâmico severamente os reprime, acusando-os de formar uma aliança com os rebeldes do ELPS.

Ingenuidade ou simples determinação, Leni continua insistindo que nada entende de política e penetra no coração da guerra mais antiga da África. Foi com uma câmara na mão para filmar uma dança que os núbios prometeram realizar para ela. O convívio da fotógrafa e ci-neasta com essa tribo africana resultou em dois livros: The last of the nuba (1973) e The people of kau (1997). Antropólogos a acusam de realizar imagens estereotipadas dos núbios e de comprar os líderes em troca de uísque e dinheiro.

Fascínio africano
Leni sempre foi fascinada pela África. Em 1956, ela percorreu Uganda, Congo e o Quênia em busca de locações para realizar um documentário sobre o tráfico de escravos. A cineasta foi a primeira mulher branca a ter contato com os núbios, que haviam sido visitados apenas pelo antropólogo austríaco S. F. Nadel nos anos 30 e desde então não tiveram mais contato com a civilização. Sua paixão pela etnia fez com que ela aprendesse o dialeto deles e documentasse sua vida entre os anos de 1962 e 1969. O filme nunca foi concluído, mas desde aquela época, ela mantém uma relação próxima com o líder Yousif Kua. Leni garantiu ao líder rebelde que não visitaria as áreas de combate. Um observador da ONG Human Rights Watch disse que estupro e tortura fazem parte da escandalosa repressão do governo sudanês contra os núbios. Segundo o observador, seria cometer suicídio aventurar-se neste momento na região. Vilas inteiras foram arrasadas pelas tropas do governo e há minas espalhadas por todos os lados.

Envie esta página para um amigoMas nada disso parece ter assustado a determinada Leni. Seria esta mais uma proposta de realmente comover o mundo, ajudando a tribo que ela diz ter adotado? Ou estaria a ex-dançarina num palco, refugiando-se da vida real e travestindo-se de uma verdade imaginária para mais uma vez ser aclamada como heroí-na? Seria Leni realmente ingênua a ponto de dar de ombros para as questões políticas que agora ameaçam sua vida e que um dia a levaram à prisão por três anos? E, como a vida em ciclos, não são as obras, mas as atitudes políticas de Leni que fazem com que ela seja julgada pela história. Afinal de contas, entre esses atos "ingênuos e pueris" está um telegrama enviado a Hitler saudando-o pela ocupação de Paris.