Às 2h15 da madrugada de quinta-feira 19, duas horas depois de o juiz Ronaldo Valle anunciar a absolvição dos três comandantes da operação policial que matou 19 sem-terra em Eldorado do Carajás (PA) em 17 de abril de 1996, a lavradora Raimunda Conceição de Almeida, 57 anos, viúva de um dos mortos no episódio, teve uma crise no acampamento do MST na praça Eneida de Morais, em Belém. "Quero ir embora, eles agora vão matar a gente. Mas não sei o que fazer, eles podem ir no assentamento também", chorava, contando que os pés, gelados pelo medo, a impediam de dormir direito há quatro dias, desde que chegou a Belém para acompanhar o maior julgamento da história do País em número de réus. Mais 147 PMs devem ser julgados. Os sem-terra têm razões de sobra para temer uma retaliação violenta. No momento em que Raimunda conversava com ISTOÉ, um ônibus com PMs que protegiam a Universidade da Amazônia (Unama), local do julgamento, passou ao lado do acampamento. Os PMs gritaram palavrões para os sem-terra: "Filhos da puta." Em seguida, um caminhão com mais policiais: "Safados." Os do terceiro veículo foram além: "Vamos voltar, vamos voltar", anunciando um novo confronto.

"É bom nóis ficar veiacos porque pra nóis não tem Justiça não, pra eles voltá num custa nada", alarmava-se Benjamin Dias, 48 anos, vizinho de rede de dona Raimunda. Até mesmo o principal advogado de defesa, o paraense Américo Leal, decidiu apelar para que seus clientes não guardassem ressentimentos contra o promotor e os assistentes da acusação, reconhecendo a truculência dos acusados. Disse que renunciaria à defesa se algo acontecesse com seus colegas de profissão. Américo afirmou em público saber quais policiais mataram os sem-terra e que tentará convencê-los a se apresentar, alegando legítima defesa. "Quero agradecer ao ilustre colega pela advertência aos seus clientes, que ele deve conhecer bem", ironizou Nilo Batista, ex-governador do Rio e assistente da acusação. "Quero voltar amanhã para o Rio, estou nervosa", repetia a mulher do criminalista carioca, Vera Malagucci.

A acusação não engoliu a controversa absolvição do coronel Mário Pantoja, do major José Oliveira e do capitão Raimundo Almendra e pediu ao Tribunal de Justiça a nulidade do julgamento, o que levou o juiz a suspender as próximas sessões. A decisão do promotor já estava tomada antes da sentença, quando o contador Sílvio Mendonça – um dos sete jurados, todos funcionários públicos – pediu que fossem exibidas de novo as imagens gravadas pela TV Liberal quando os sem-terra avançaram sobre os PMs na Curva do S, da PA-150, momentos antes da chacina. O jurado mostrou um sem-terra disparando um tiro. Só depois de manifestar claramente sua opinião é que foi advertido pelo juiz de que não deveria fazê-lo.

Em seguida, na sala secreta, os jurados preencheram os quesitos dando maioria à tese de que os comandantes atuaram para que os homicídios ocorressem, mas o juiz acrescentou um quesito que avaliava a tese da defesa, de insuficiência de provas. Deu 4 a 3 a favor do coronel Pantoja e 5 a 2 para o capitão e o major. "Essa é uma questão de Direito e não de fato, do caso em si, e o juiz não poderia ter feito essa pergunta aos jurados. Ganhamos, mas não levamos", disse o promotor. No dia seguinte, o MST resolveu abandonar o julgamento. "Vamos embora. Não vamos participar deste teatrinho para estudantes de Direito", disse o líder dos sem-terra, o gaúcho João Pedro Stédile. "Isto é uma farsa", emendou Gilberto Pontes, da coordenação nacional do movimento. "Partiremos para uma campanha de denúncias no Brasil e no Exterior."

 

Democracia – "O Brasil ainda não tomou consciência de que a impunidade ou a sensação de impunidade impedem a consolidação da democracia." A reação, "como cidadão", é do presidente Fernando Henrique Cardoso ao saber do resultado do julgamento. FHC espera revisões no processo. "Não tenho provas, não sei, não posso falar, mas dá uma sensação um pouco estranha em quem esperava alguma condenação em vários níveis." O presidente lembra que o massacre indignou a ele e ao País. "Isso é inaceitável, o Brasil não pode mais conviver com esses fatos. Espero que a Justiça continue funcionando com aptidão para equilibrar as coisas e que, com as próprias decisões que estão se encaminhando, o País se sinta mais seguro de que não haverá impunidade." Fernando Henrique insiste na punição de alguém pelo massacre: "O que não pode é não ter responsável."

O debate jurídico, que continuará, não foi a única marca do julgamento. Como nas 8.090 páginas do processo, a divisão ideológica marcou a sessão, à qual os sem-terra praticamente não tiveram acesso porque as credenciais foram entregues a parentes dos réus e estudantes. Uma uni- versidade, privada, instalou seis grandes logotipos em frente aos holofotes. Só depois do princípio de um confronto entre PM e acampados – incitados pelo prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PT), e evitado por políticos liderados pelo deputado José Genoíno (PT-SP) – é que a rua em frente foi liberada e um telão montado para os cerca de 500 sem-terra.

Criminalista famoso pela oratória contundente, Américo Leal usou o guerrilheiro Che Guevara para criticar o MST por viver à custa do governo, "que dá tudo para eles, deixa que saqueiem o que quiserem, mas processa um funcionário público que pega uma caneta sem requisição". Chegou a comparar os sem-terra aos portugueses, que massacraram os nativos e dilapidaram as riquezas brasileiras. "O MST faz insulto póstumo a Che ao usá-lo em bandeiras. Se Che ficasse choramingando favores de Fulgêncio Batista, estaria em Cuba lambendo as botas dele até hoje", disse. Nilo Batista comprou o embate. Para refutar a tese de que não havia provas de que os comandantes da PM apertaram o gatilho, citou líderes nazistas condenados pelo que suas tropas fizeram. "Hitler seria inocente porque não apertou o gatilho?"

O debate arrancou aplausos e vaias do público, para o desespero do juiz. O promotor Marco Aurélio Nascimento, um tanto quanto atrapalhado, foi ridicularizado pela defesa por falhas no processo e, nos bastidores, criticado pelos assistentes. "Ele optou por testemunhas frias, em vez de arrolar as viúvas", observou um assistente.

O julgamento deixou claro que o governador Almir Gabriel (PSDB) é a unanimidade entre as partes envolvidas. Foi responsabilizado pela defesa e, na rua, alvo número 1 dos sem-terra. "Fora daqui, assassinos do Almir", gritavam para os 500 PMs. "O Almir é um bom companheiro, ninguém pode negar. Senão, ele manda matar", ironizavam, assim que a sentença foi anunciada e outro confronto iniciado, com dois PMs e meia dúzia de sem-terra com ferimentos leves. O governador exigiu foro privilegiado e depôs, com o secretário de Segurança, na residência oficial. O deslocamento de juiz, jurados, promotor e advogados tomou quase todo o dia de quarta-feira.

 

Inferno – Outro astro da sessão foi Roberto Lauria, outro advogado atuando na defesa dos PMs, que comparou o julgamento a uma peça de teatro. "Nada foi feito depois de Eldorado e os sem-terra e a PM continuarão miseráveis como sempre", afirmou. Disse que inocentes não poderiam ser condenados pelo mau trabalho do Ministério Público, que não identificou os autores dos disparos. As 64 horas de júri expuseram o conflito ideológico de uma fronteira econômica cuja miséria não impede a atração de nordestinos fugidos da seca. "O juiz manipulou e será culpado pelos próximos crimes de terra no sul do Pará. Como acredito em céu e inferno, espero encontrá-lo no inferno", dramatizou João Pedro Stédile.

O medo dos sem-terra não é infundado. Depois de 17 de abril de 1996, data do massacre, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza 22 trabalhadores rurais mortos só na Diocese de Marabá. Os primeiros a enfrentar um júri foram os três oficiais absolvidos. Em 30 anos, houve 486 assassinatos no sul do Estado. Só dois casos foram a júri, segundo o coordenador da CPT em Marabá, José Batista Afonso, que integra as listas de marcados para morrer. Às vésperas do julgamento, ele embarcou otimista para Belém: "Não tenho dúvida da condenação dos oficiais. Isso vai trazer um pouco de tranquilidade." O resultado mostrou que a impunidade venceu mais uma.