Não fosse o relógio pendurado na parede de concreto não daria para saber se é dia ou noite atrás das grades na carceragem do 81º Distrito Policial, na zona leste de São Paulo. Uma densa fumaça de cigarro deixa o ambiente mais escuro e a falta de janelas impede o ar de circular. O silêncio é cortado por um zunzunzum nervoso de vozes desconexas de homens que tentam, sem muito sucesso, esticar as pernas em um pequeno espaço de 4×3 metros quadrados. Com o olhar perdido por falta de horizonte, os presos domam as horas pensando na vida ou sonhando com a privacidade que deixaram para trás, assim que as portas de acesso à liberdade foram cerradas. Quase tudo ali é coletivo. À noite, 13 homens disputam o chão frio e úmido onde cabem, com alguma dignidade, não mais que seis pessoas.

Há 20 dias esse disputado pedaço de chão é a casa e a cama do administrador de empresas José Edilson Divino Lima Júnior. Cabelos claros e olhos verdes, José estava acostumado a levar uma vida padrão classe média, até ter sido preso por não quitar a dívida de R$ 15 mil referente ao pagamento da pensão alimentícia para a filha de cinco anos. A empresa dele faliu e sua vida virou um inferno. No mesmo aperto que ele, vivem 80 mil homens amontoados nas carceragens dos distritos e nas penitenciárias de São Paulo.

Trata-se da maior população carcerária da América Latina e uma das maiores do mundo. Gente suficiente para lotar o estádio do Morumbi em dia de clássico. Um número que não pára de inflar e de preocupar as autoridades que não sabem e não têm onde botar tanta gente. Por falta de local adequado, os pátios dos distritos se transformam em presídios e estão abarrotados. Das 93 delegacias da capital, 76 abrigam presos ilegalmente. A maioria em bairros populosos. Os distritos mais superlotados ficam na periferia. São fugas constantes. No domingo 15, a população, perplexa, assistiu a mais um desses episódios bárbaros. Em duas delegacias de bairros nobres como o 27º DP, no Ibirapuera, e o 15º DP, no Itaim, houve o resgate de um assaltante de banco e uma fuga em massa de presos. Dos 41 homens que saíram pela porta da frente, 27 foram recuperados. A selvageria dos bandidos, que espancaram a delegada Cristiane de Oliveira, que estava decidida a pedir exoneração da polícia, forçou o secretário a mudar suas prioridades.

Fugas As consequências dessa remoção demorada são perversas para a sociedade. Somente este ano, 405 encarcerados escaparam em 52 fugas de delegacias. Só de tentativas foram 44. Em 1998 os resgates livraram 145 homens e ajudaram 2.301 condenados a fugir. Dos estabelecimentos penais escaparam 5.888 detentos no ano passado em todo o Estado. E até maio deste ano mais 1.832 presos estavam foragidos. Foi-se o tempo em que era seguro morar próximo a uma delegacia. "Sempre que ocorre uma fuga ou resgate, a vida dos moradores corre perigo", afirma o promotor criminal Gabriel Inellas. A superlotação é uma operação aritmética difícil de ser resolvida pelo Estado, que dispõe de apenas 57.675 vagas. Isso, sem contar os 157 mil mandados de prisão para serem cumpridos. Se todos os condenados fossem presos, o sistema entraria em colapso. Para se ter uma idéia do aperto que é hoje, há celas com 15, 20 homens. Na Casa de Detenção, a mais lotada do sistema, os sete mil presidiários estão saindo pelo ladrão, literalmente. Tudo porque de 51.021 presidiários no início do governo Covas, em 1995, o número saltou para 73.315, um crescimento de 43,69%. Com isso, a situação, que já não era das melhores, se agravou nos últimos seis meses quando a população carcerária bateu recordes históricos no Estado, conforme revelam as estatísticas da própria Secretaria de Segurança. Marco Vinício Petrelluzzi, o secretário da pasta, reconhece o caos e admite que a curto prazo não dá para resolver o problema. "Do jeito que está, o que o Estado tem sob sua guarda são depósitos de gente", diz o secretário.

Para o presidente do Sindicato dos Delegados, Paulo Siquetto, a construção de novos presídios não refresca em nada o problema. "Essas resoluções são apenas paliativas." Esta semana Siquetto aconselhou os delegados plantonistas a fechar as delegacias às 20 horas como protesto. Tudo porque a transferência dos dez mil presos condenados, que deveriam ficar provisoriamente em delegacias, não foi cumprida como prometido. A meta anterior, anunciada com alarde em agosto passado pelo vice-governador, Geraldo Alckmin, era tirar até outubro de 1998 todos os presos confinados de forma irregular das delegacias. A primeira transferência transformou-se em show, com os presos embarcando até em avião com destino ao interior. "Não cumprimos porque não esperávamos um crescimento da população carcerária tão grande este semestre", justifica Petrelluzzi. De acordo com um segundo cronograma da Secretaria de Segurança, anunciado no início deste ano, a partir de maio seriam abertas 1.200 novas vagas por mês até que todos fossem transferidos.

Com duas mil pessoas sendo presas por mês na capital, Siquetto prevê que em menos de seis meses a situação caótica será a mesma de hoje. Ou seja, a polícia vai continuar cuidando de preso e a população, com as carceragens das delegacias novamente lotadas, será obrigada a conviver com o medo. O secretário afirma que os resgates acontecem porque os presos não estão no lugar onde deveriam estar. Siquetto insiste que se fosse colocado um PM armado em uma guarita blindada nas portas de cada delegacia a medida iria inibir a ação das quadrilhas. Mas a PM não quer nem ouvir falar nessa hipótese e alega que não há contingente. Além das fugas, nesse quadro nada animador, outra questão que preocupa é a dos direitos humanos. "Chegamos a um limite insustentável", reforça o deputado estadual Paulo Teixeira (PT-SP). As penas alternativas, como prestação de serviço à comunidade, poderiam ser uma saída e contribuiriam para minimizar o problema. Mas, no Brasil, apenas 3% dos presos receberam esse tipo de condenação. Mesmo admitindo a insustentabilidade do atual sistema, o secretário de Segurança não perde a chance de puxar a sardinha para o seu lado. "Nunca se prendeu tanto", afirma. Mas, por outro lado, as estatísticas de violência também nunca foram tão altas.

Barril de pólvora Petrelluzzi garante que o governo não está assistindo ao barril explodir de braços cruzados. "Nunca se investiu tanto na construção de novos presídios." Das 21 novas penitenciárias prometidas pelo governador em seu discurso de reeleição, 17 já estão funcionando em cidades do interior. Quatro serão inauguradas até o fim do ano. No total serão 19.824 novas vagas. Isso deve servir para desafogar um pouco o sistema. Mas, se os investimentos pararem por aí, no final do mandato a questão será mais uma vez aritmética. "Não depende apenas de nós e sim da situação socioeconômica", esquiva-se o secretário de Administração Penitenciária, João Benedito de Azevedo Marques. "Para resolver de imediato, só se a condição de vida melhorasse subitamente e a criminalidade diminuísse."

Enquanto o real de FHC e sua política econômica não ajudam, o governador Mário Covas planeja a construção de outras dez penitenciárias para somar mais 3.280 vagas e tentar conter o incêndio. Mas não se sabe quando elas ficarão prontas. Enquanto isso, os vizinhos de distritos ou cadeias driblam a insegurança como podem. Cansado de assistir a esses conflitos, o prefeito de Osasco, Silas Bortolosso (PTB), interditou em maio a cadeia pública local, na Vila Pestana, um bairro que abriga quase dez mil moradores. "Tínhamos fugas diárias na ocasião e era humanamente impossível continuar como estava", diz. Cem detentos foram retirados, mas outros 100 foram novamente transferidos evidenciando o jogo de empurra-empurra em que se transformou a questão carcerária no Estado.

 

"Eu vou te matar"

Nesta semana a delegada Cristiane Maria Alves de Oliveira foi vítima da displicência com a qual o governo trata a questão carcerária nos distritos policiais e da ousadia dos marginais presos na carceragem de seu local de trabalho. Bandidos periculosos trancafiados onde não deveriam estar são um convite para que as quadrilhas se armem para resgatá-los. Na manhã do domingo 15, Cristiane chefiava o plantão do 27º Distrito Policial, no Ibirapuera, quando um bando fortemente armado entrou pela porta da frente para libertar um assaltante de banco. Ela foi agredida a socos e coronhadas. "Olha pra mim que eu vou te matar", repetia insistentemente um dos marginais que lideravam o grupo. É a segunda vez que a delegada é espancada. No ano passado, grávida de quatro meses, Cristiane estava de plantão no 98º DP, em Heliópolis, quando uma quadrilha invadiu a delegacia para resgatar um outro assaltante de bancos, preso na carceragem. Ela foi obrigada a deitar-se no chão para, em seguida, ser atingida por socos e pontapés na barriga. Traumatizada com as novas agressões, Cristiane anunciou, no começo da semana, que iria entregar o cargo e pedir demissão da polícia. "Muitas mortes ainda podem ocorrer, antes que se mude esse sistema policial que nós temos hoje", prevê. O delegado titular do distrito que Cristiane trabalha, Reinaldo Corrêa, disse que ela está descansando em uma cidade do interior de São Paulo e deverá ser transferida para um local onde não tenha presos.