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Pouca gente mergulhou tão profundamente no mundo das drogas e conseguiu sobreviver para contar a história como Ana Karina de Montreuil, uma jovem rica e de família tradicional, tataraneta do proclamador da República e primeiro presidente do Brasil, o marechal Deodoro da Fonseca. Ana começou a cheirar cocaína com 11 anos de idade e aos 15 já era completamente dependente de drogas. Sem mesada suficiente para bancar o vício, ela chegou a tramar o próprio sequestro para extorquir dinheiro da família. Em pouco tempo, a menina que fazia refeições com talheres de prata e pratos folheados a ouro e teve aulas de etiqueta à mesa para aprender a manejar a pinça de escargot virou uma aspirante a marginal. Para quem cresceu achando natural ter caviar na geladeira, estudou dois idiomas, pintura, escultura e equitação, as drogas pareciam apenas uma aventura. Até virarem o centro da existência de Ana. Por suas mãos, boca e nariz passaram maconha, haxixe, heroína, cocaína, ácidos, anfetaminas e chá do Santo Daime. A trajetória de dependente química inclui também tentativas de suicídio, estupro e tráfico.

Livre do vício há cinco anos, Ana Karina, 37 anos, hoje é totalmente contra qualquer tipo de droga.
Sua trágica história começou, como tantas outras de jovens da classe média, dentro da própria casa.
Ana conheceu a cocaína nas festas promovidas pela falecida mãe, viciada em álcool e drogas. Entre bebidas finas e canapés coloridos, tinha sempre uma bandeja de prata cheia de pó branco. Ela foi prisioneira do vício durante 19 anos. Nesse período, teve 11 overdoses e se internou pelo menos 16 vezes. “Nenhum tratamento que fiz no Brasil deu resultado.

Tive que ir para a Argentina me tratar”, conta. Porém, antes de encontrar a ajuda definitiva, ela adentrou o submundo das drogas e do crime a partir do namoro com o traficante e sequestrador uruguaio Wilson Aníbal Ramos, o Gringo, que liderava o tráfico no Morro do Vidigal, em São Conrado, na zona sul do Rio de Janeiro. Com ele, Ana teve a ideia de forjar o próprio sequestro para extorquir sua família. O valor do resgate, convertido para a moeda atual, seria em torno de R$ 3 milhões – metade dela e metade de Gringo.
“Na época eu pensei: dessa forma posso me livrar da minha mãe e ver quanto valho para o meu pai”, disse Ana à ISTOÉ.

“Imagina a dor de ouvir
sua filha perguntar:
‘Você não vai à minha
festa?’ E você ter
de dizer: ‘ Não. ”
Ana Karina de Montreuil

No entanto, a situação fugiu do controle e, quando a jovem quis desistir do plano, se deu conta de que tinha feito acordo com bandidos de verdade. Ana virou refém e passou por vários cativeiros, em barracos de favelas e apartamentos no asfalto. Num deles, perdeu a virgindade, ao ser estuprada por Gringo. Quando foi encontrada por policiais, estava amarrada. Sob o comando do delegado Hélio Vigio, os PMs estouraram o cativeiro e prenderam a quadrilha. Ela também foi acusada e passou um tempo na Escola Santos Dumont, um reformatório para meninas infratoras.
Depois de um período internada, quando tentou o suicídio cortando os pulsos, foi retirada da instituição pela família e levada para uma temporada de dois anos na França.
A volta ao Brasil, no final de 1989, significou também o retorno às drogas. Ana costumava subir os morros de salto alto, usando roupas da grife francesa Dior, uma de suas preferidas. Passou a roubar joias da família para trocar por drogas. Um relógio Rolex de brilhantes, herança da avó, cujo preço ultrapassava R$ 15 mil, por exemplo, virou 15 papelotes de cocaína, que custavam R$ 150.
O passo seguinte foi revender a droga que adquiria no morro para amigos do seu círculo social, como forma de bancar o próprio vício. A nova condição a levou a vivenciar situações como a ocorrida num ponto de
tráfico no Morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. Lá, viu um traficante cismar que um jovem viciado era policial. Alucinado, o bandido derrubou o rapaz e desferiu vários tiros. Em seguida, passou a arma de mão em mão, para que todos também atirassem na vítima.
O bandido ainda ordenava o alvo:
“Agora, atira no pé.” Quando chegou a vez de Ana, ela não teve coragem. Começou a chorar. Um dos presentes, amigo dela e também do pessoal da boca de fumo, conseguiu convencê-los a liberar a garota da tarefa. “Desci o morro correndo, apavorada”, lembra.

Mas nada do que ela vivia – os medos e a proximidade com o risco – era suficiente para fazê-la largar as drogas. Ana Karina fez vários abortos até que, aos 18 anos, foi mãe pela primeira vez. Ficou 12 anos sem ver a filha. “Sabia apenas que ela morava com meus avós, mas não
tinha contato.” Quando teve a segunda filha, já lutava contra o vício e estava num período de calmaria. No entanto, no aniversário de 4 anos da caçula teve que ser internada de novo. “Imagina a dor de ouvir sua filha perguntar: ‘Você não vai à minha festa?’ E você ter de responder: ‘Não. A mamãe vai para o hospital porque está doente.’”

Ana Karina só foi ver a menina quatro anos depois. A cura aconteceu numa clínica de Buenos Aires, onde se surpreendeu com o diagnóstico do médico – seu problema central não era a dependência química, e sim um transtorno bipolar, doença que se caracteriza pela alternância de humor, em que a euforia e a depressão se intercalam com períodos de normalidade.
Mudou o tratamento, teve força de vontade e, enfim, êxito.

Como ninguém passa incólume por experiência semelhante, Ana Karina traz no corpo 21 tatuagens – uma delas, na nuca, diz, em inglês, “Te encontro no inferno” e outra, no braço, no mesmo idioma, é “Salveme” – e também as consequências da vida desvairada que teve durante anos. “Fiquei com uma sequela no coração, provocada por uma das overdoses que tive. Tenho também uma lesão na parte frontal do cérebro.”

SEQUELAS
Ana Karina está livre do
vício, mas ficou com lesões
no coração e no cérebro

Hoje, ela vive com as filhas e se orgulha de ser uma sobrevivente.
“Me livrei de vez das algemas que me prendiam ao passado quando expurguei os fantasmas no livro ‘ A Bela Menina do Cachorrinho’ (Ed. Ediouro).” Sobre o movimento pela legalização da venda de maconha, a ex-viciada é radical. “Drogaé droga. Não tem que ser legal.”