O presidente Fernando Henrique aproveitou na terça-feira 17 uma reunião com líderes aliados para reconhecer que seu governo não tem sabido se antecipar a problemas que acabam virando crises. Foi assim, por exemplo, com a greve dos caminhoneiros, quando demorou dois dias para enfrentar a paralisação. O movimento dos ruralistas, que ocupou a Esplanada dos Ministérios com caminhões e tratores na última semana para exigir um perdão das dívidas com os bancos, ditou as cartas em Brasília até que Fernando Henrique resolveu dar um murro na mesa. Depois de apresentar uma proposta que alivia os bolsos dos produtores rurais sufocados pelo descompasso entre os preços agrícolas e os juros bancários, o presidente deu um chega pra lá na quarta-feira 18 nos grandes caloteiros do campo. "O governo não pode concordar com o perdão para grandes devedores, sobretudo quando são devedores contumazes", reagiu FHC. O episódio serviu de combustível para o mercado financeiro, que teve na alta do dólar seu maior termômetro. Agora, o Planalto promete jogar pesado para rejeitar na próxima semana o calote rural. Pretende, assim, dar um sinal ao nervoso mercado financeiro de que não perdeu as rédeas do Congresso e a batalha do ajuste fiscal. Mesmo encorpados com o inusitado apoio das esquerdas, os ruralistas sentiram o baque e a dificuldade de aprovar nos próximos dias o perdão de seus débitos. Na manhã da quinta-feira 19, o deputado Augusto Nardes (PPB-RS), um dos líderes do movimento, telefonou para o secretário-geral da Presidência da República, ministro Aloysio Nunes Ferreira, e cobrou mais concessões do governo. O diálogo foi ríspido. Diante da recusa do ministro, Nardes partiu para a chantagem. "Se vocês não cederem, vamos fazer oposição ao governo no Congresso", ameaçou o deputado. "Então, façam", retrucou Aloysio.

O Planalto vai adotar o mesmo estilo com outro movimento que ameaça sitiar o governo em Brasília. Na mesma reunião com líderes governistas, Fernando Henrique ensaiou o tom do contra-ataque à manifestação que as esquerdas vão fazer na quinta-feira 26, em que prometem levar 100 mil pessoas à Esplanada para pedir o impeachment do presidente. "Estão se enveredando pelo caminho do golpismo, o que não é bom para ninguém e muito menos para a democracia", censurou FHC. "Essa manifestação não tem pleitos, visa apenas a desestabilizar o governo. É o golpismo da esquerda", define o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves (MG). "Renúncia ou impeachment são soluções institucionais. Golpismo é imaginar que o presidente está acima da Constituição", rebate o líder do PT na Câmara, deputado José Genoíno (SP). O problema dos petistas é que o movimento pelo impeachment partiu das alas mais radicais das esquerdas e, na esteira da crescente impopularidade de Fernando Henrique, as correntes mais moderadas foram a reboque para não perder espaço político.

 

Pacote social – Para romper o cerco ao presidente, o Planalto trabalha em tempo integral na identificação de sobras de caixa e programas em que os recursos não estão sendo bem aplicados para armar um pacote social. Entre as medidas arquitetadas, estão a injeção de R$ 3 bilhões num programa habitacional para construção de 500 mil casas populares e a criação de 1,5 milhão de empregos. Planeja-se também dar um gás às pequenas e médias empresas com a unificação de todos os programas de crédito para o setor e um forte apoio financeiro do BNDES. Está sendo preparado ainda um desafogo para os pequenos produtores com a liberação de R$ 3,4 bilhões no Programa de Agricultura Familiar. "Vamos dar uma chacoalhada nos bancos oficiais. Muitas vezes há recursos, mas eles não chegam aos produtores por causa do medo da burocracia", avalia o ministro Aloysio Nunes. Com essas providências, o governo espera conter a queda livre da popularidade. Não alimenta, porém, a esperança de uma reversão nos raquíticos índices de aprovação de Fernando Henrique. Segundo os conselheiros do presidente, uma mudança mais significativa no humor da população só vai acontecer se a aposta da equipe econômica numa retomada gradual do crescimento começar a dar certo. "Chegamos ao fundo do poço, é verdade. Mas daqui para a frente as coisas vão melhorar", aposta o secretário de Comunicação da Presidência, Andrea Matarazzo.

Enquanto isso não acontece, Fernando Henrique tenta administrar as pressões das ruas. Mesmo com o acirramento do duelo político, o governo conseguiu chegar a um entendimento com a oposição para evitar que o protesto da próxima quinta-feira descambe para a violência. O presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), e outros líderes oposicionistas procuraram na quarta-feira 18 o ministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, para assegurar o propósito pacifista da manifestação. Preocupados com o clima de tensão, agravado com a absolvição dos comandantes das tropas que há três anos massacraram sem-terras em Eldorado do Carajás, as esquerdas pediram que o Planalto assuma o comando da operação de segurança e coloque a Polícia Militar de Brasília sob as suas ordens. O ministro Aloysio Nunes entrou no circuito e acertou com o governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, a retirada dos caminhões e tratores estacionados na Esplanada dos Ministérios antes da chegada dos manifestantes oposicionistas.

 

Calote rural – Os ruralistas não devem retribuir o apoio das esquerdas. Tudo porque a proposta do governo conseguiu dividir o movimento ao excluir apenas os latifundiários do perdão. Na ponta do lápis, eles seriam os grandes beneficiados pelo projeto ruralista. No Banco do Brasil, dono da maior carteira de crédito rural, 80% das dívidas estão concentradas nas mãos de apenas 6% dos devedores. Uma anomalia que permitiu na batalha com os ruralistas, a primeira vitória do governo na área de comunicação. Ficou claro que um setor desta bancada está lutando para institucionalizar o calote. Uma lista em poder do palácio mostra que mais de 100 parlamentares tiveram acesso a empréstimos agrícolas, sendo que 47 estão inadimplentes. Dois deles, devem mais de R$ 100 milhões, um dos quais rolando a dívida há mais de 20 anos. Segundo a área econômica do governo, boa parte da dívida desses parlamentares não resiste a uma auditoria. O dinheiro ou foi desviado para campanha eleitoral ou para outros tipos de empreendimentos não-agrícolas. Isso não impede que se constate a existência de uma crise no campo, que pode se refletir no resultado da próxima safra.

 

Sede de dólar – Mesmo com a disposição de Fernando Henrique de barrar a gula ruralista, o movimento acabou ajudando a empurrar o País, na última semana, para uma onda especulativa que não se via desde a desvalorização do real, em janeiro. Na sexta 20, dia mais crítico, o dólar chegou a bater em R$ 1,99. A cotação somente se acomodou em R$ 1,89 depois que o Banco Central leiloou US$ 1,1 bilhão em títulos cambiais e, assim, acalmou as empresas que buscavam a moeda americana. "Foi uma bolha", avaliou Luiz Fernando Figueirero, diretor de política monetária do BC. O pessimismo não está ligado aos números macroeconômicos, que até pararam de piorar. Pelo segundo trimestre consecutivo, o PIB registrou um crescimento. Foi de modestíssimo 0,93%, mas indica uma mudança de rota. O problema é que, no front externo, as más notícias vêm alimentando a descrença nas perspectivas das economias emergentes, principalmente na América Latina. Isso foi reforçado na última quinta-feira pelo governo do Equador que ameaçou suspender o pagamento da sua dívida externa. No Brasil, o bafafá promovido pelos produtores rurais só serviu para engrossar as incertezas sobre o destino do ajuste nas contas do governo. Empresas e investidores ignoraram as medidas adotadas pelo Banco Central para estimular o ingresso de divisas no País e buscaram a proteção do dólar. "Objetivamente, não há motivo para tanto pessimismo. É falsa a impressão de que o governo vai gastar mais do que arrecada e que a base parlamentar deixará de aprovar as medidas complementares do ajuste fiscal", tenta tranquilizar o presidente do BC, Armínio Fraga, que até obteve do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, o compromisso de uma trégua nas críticas à condução da política econômica pelo ministro Pedro Malan. O nó começa a se afrouxar.

 

Dois lados da mesma moeda

 

"Só tenho crédito com minha mulher"

Quando lembra do seu passado, José Nunes Ferreira, conhecido como Zé Barbosa, 63 anos, enche os olhos de água. "Eu comecei do zero. Cheguei a ter nove tratores, dois caminhões, dois pivôs, colheitadeira, caminhonete e uma casa", conta o agricultor que cultivava 350 alqueires em terras arrendadas. Anos de prejuízo e Zé Barbosa perdeu tudo. O Banco do Brasil lhe tomou até a casa que foi dada como garantia de uma dívida agrícola que contraiu para financiar a produção de feijão, soja e trigo. E o pior é que sua dívida com o banco ainda supera os R$ 300 mil. Na segunda-feira 16, ele e outros 30 agricultores de Itaí (SP) levantaram acampamento na Esplanada dos Ministérios para engrossar o caldo da bancada ruralista. "Na minha cidade eu não tenho crédito nem para comprar pão fiado. Por enquanto só não perdi o crédito com a minha mulher", debocha. Para conseguir morar numa modesta casa no centro de Itaí, ele deu como pagamento adiantado por seis meses de aluguel o jogo de sofá, mesa e cadeiras da sua sala e está sobrevivendo graças ao trabalho da sua mulher.

"Meu irmão seria beneficiado"

Do outro lado da moeda, mas com muito mais poder de fogo está o deputado Dilceu Sperafico (PPB-PR), presidente da Comissão de Agricultura da Câmara e integrante cativo da bancada ruralista. A bandeira pelo perdão da dívida do setor ruralista beneficia diretamente sua família, que é dona da cerealista Agrícola Sperafico. O seu irmão, o ex-deputado Dilso Sperafico (PSBD-MS), deve aproximadamente R$ 1,6 milhão. A dívida é fruto de um empréstimo contraído em 1993 para plantar soja e milho. "É verdade. O que eu posso fazer? Meu irmão seria beneficiado", comentou o deputado. Dilceu, que já foi sócio do irmão na cerealista, admite que também está endividado, mas, segundo ele, nada que tenha a ver com crédito agrícola. Mas, ao contrário da família de Zé Barbosa que teve de se desfazer de tudo, os Speraficos parecem ir muito bem, obrigado. Possuem um hotel em Toledo (PR), o Olinda Park Hotel e a Água Mineral Itaipu também no Paraná. O deputado ainda pode se dar ao luxo de patrocinar a carreira dos dois sobrinhos – filhos do irmão endividado – na Fórmula 3.

 

Início da debandada

a última terça-feira, o senador Artur da Távola (RJ) deixou o presidente Fernando Henrique atônito ao anunciar o seu desligamento do PSDB. Fundador e ex-presidente do partido, Távola não quer terminar os seus dias num partido que, segundo ele, está identificado hoje com a direita. "Eu tenho 63 anos, ou eu sou fiel aos meus princípios ou eu desisto da política." Por motivos diversos, outros parlamentares já anunciaram a debandada do ninho tucano. As próximas baixas serão dos senadores Álvaro e Osmar Dias (PR) e Carlos Wilson (PE)

ISTOÉ – Por que o sr. sai do PSDB?
Artur da Távola O partido foi sendo confinado e perdeu massa crítica. O governo está muito amarrado à questão do ajuste fiscal e tem forte presença tecnocrática. A política em relação ao funcionalismo, por exemplo, é perversa e errada. Coloca sobre os ombros do funcionalismo crises e problemas que ele não criou. O projeto do governo é de estabilidade com desenvolvimento sustentado, mas tem se sustentado muito mais no sacrifício das classes menos favorecidas.

ISTOÉ – O acordo com o FMI desvirtuou o PSDB?
Távola – A política do FMI ajuda a paralisar o equilíbrio entre o social e o econômico nas áreas da previdência e do funcionalismo público. Isso conduz o presidente a encontrar mais apoio na direita do que na própria social-democracia. O partido virou uma direita progressista.

ISTOÉ – O sr. se decepcionou com o presidente Fernando Henrique?
Távola – Não. Eu acho que ele faz o que pode.

ISTOÉ – Mas sua popularidade hoje só se compara a governos que estavam em plena decadência.
Távola
Acho que o presidente ainda pode reverter. Não se impressiona com isso quem viveu no tempo do Juscelino, ouviu o que se dizia do Juscelino, e vê que a história o consagrou.

ISTOÉ – Alguns tucanos dizem que o sr. saiu porque o governo não atendeu a pedidos de nomeações.
Távola Se eles me disserem quais eram os cargos que eu estava pleiteando…

Isabela Abdala