Quando o presidente da Áustria Thomas Klestil, muito a contragosto, deu posse na sexta-feira 4 ao novo governo do país, formado pela coalizão entre o Partido do Povo, de centro-direita, e o Partido da Liberdade, de extrema direita, os planos econômicos de muita gente foram colocados na geladeira. Os proprietários da vila privada na Stumpergasse 31, em Viena, por exemplo, adiaram suas intenções de transformar um pequeno e mal iluminado apartamento local em museu. Há anos multidões de curiosos batem à sua porta na expectativa de visitar aquele pardieiro. A curiosidade é explicável: ali morou o jovem Adolf Hitler. Com a Europa – e outras partes do mundo – em revolta pela elevação ao palco nacional de Jörg Haider, a estrela maldita da Áustria e líder do Partido da Liberdade (FPÖ, de fortes cacoetes neonazistas), achou-se que pegaria muito mal uma abertura pública dos antigos aposentos do Führer.

Nem todos, porém, têm tais pruridos. Que venham as sanções – ameaçadas ou já colocadas em prática por 14 países da União Européia, além de Israel e dos Estados Unidos. A Áustria se orgulha de seus filhos, principalmente daqueles que enfrentam as maltas estrangeiras. É verdade que nem sempre os sentimentos sinceros são servidos ao consumo público a seco. Normalmente são necessários alguns tantos schnapps (drinques) para se criar um clima de confraria e se soltar as línguas. O funcionário da Prefeitura de Viena Wolfgang Mit-chke, por exemplo, já estava calibrado quando se abriu para ISTOÉ na quarta-feira 9, no famoso Café Schwarzenberg. "Vamos livrar o país da negrada! Já está na plataforma de governo de Haider a cota zero para imigração. Chega de turcos, bósnios, sérvios, árabes e outros estrangeiros que só vêm aqui para poluir o país com seus crimes. Haider nos faz sentir orgulhosos outra vez. Chega de baixar a cabeça. Chega de nos impor vergonha. Atrocidades foram cometidas pelos dois lados na guerra. Não temos que ficar nos penitenciando para o resto da vida", garantiu este ativista do Partido da Liberdade e, como o seu ídolo Haider, também filho de soldado das tropas austríacas da Waffen SS.

Mitchke, diga-se, não é o denominador comum da maioria austríaca. Com seu anacrônico jaleco de couro, paramenta tradicional do país, e rapidez em sacar a carteirinha e as chaves da sede do partido, ele se transformou, também como Haider, numa atração para a mídia. O presidente do FPÖ e seu mais insignificante correligionário vivem das declarações bombásticas para a imprensa. O primeiro busca o poder através do choque das manchetes e o segundo deseja apenas o fluxo contínuo de schnapps mantido por repórteres. As demonstrações violentas nas ruas de Viena no começo do mês, culminando com a verdadeira batalha campal em frente do Hofburg Palace, na sexta-feira 4, indicam claramente que também há revolta e vergonha no país. O cenário não poderia ser mais significativo, pois foi dos balcões do Hofburg que Hitler discursou para as multidões delirantes, depois de voltar a Viena em março de 1938, trazendo as tropas alemãs. Somente no confronto da sexta-feira – com 15 mil pessoas e o pior de uma série de outros cinco -, 58 manifestantes e 29 policiais ficaram feridos. Os membros do Ministério que seria empossado foram obrigados a usar um túnel para ir da chancelaria ao escritório presidencial.

Críticas à União Européia
"É preciso entender que 75% dos eleitores não votaram na extrema direita", disse a ISTOÉ Friedrich Dorf, político do liberal Partido Social Democrata, e que até há pouco tempo mandava no país. A leitura das estatísticas, no entanto, pode levar a várias interpretações. Significa, por exemplo, que um em cada quatro eleitores cravou seu voto nos meninos de Haider. "Há um forte sentimento contra o establishment que governou o país por 50 anos", explica Maria Rauch Kallatt, secretária-geral do Partido do Povo. "O que ficou claro é que o povo austríaco disse um basta à política corrupta da Social Democracia", afirmou ela a ISTOÉ. "A reação da União Européia é excessiva e, no mínimo, injusta. Até mesmo os maiores defensores da participação austríaca na União estão chocados. Quer dizer que nós não podemos eleger nosso próprio governo sem antes consultar Bruxelas?", pergunta Kallatt. Ela toca num dos mais delicados nervos expostos pela parceria forjada por seu partido e a extrema direita. Mesmo além das fronteiras do país, já se levantam vozes contra a interferência. "Afinal, outros países também têm partidos de extrema direita participando do processo político e isso não é considerado o fim do mundo", dispara. Ela tem razão: na França, o neofascista Jean-Marie Le Pen ganhou 11% dos votos nas eleições para o Parlamento Europeu em 1984, fez acordos de parceria com a centro-direita em cinco municipalidades e só teve sua trajetória interrompida depois do cisma de seu lugar-tenente Bruno Mégret, que dividiu a Frente Nacional. Na Itália Gianfranco Fini, da Aliança Nacional, fez parte do governo de coalizão formado por Silvio Berlusconi em 1994. Fini procurou distanciar seu partido dos antigos amores pelas linhas fascistas, mas suas raízes estão cravadas no jardim do Duce. Por toda a Europa, movimentos de extrema direita, maiores ou menores, participam de eleições. Por que a Áustria não poderia também participar deste jogo democrático?

"O passado austríaco responde a esta questão", diz Shmmul Rosenthal, da Liga Israelense Antidifamação. "Os votos depositados nas urnas em favor do partido de Haider, na verdade, apóiam uma política extremista, racista, anti-semita, que não pode ser aceita. Principalmente num país como a Áustria, onde este tipo de política historicamente já causou tanta catásfrofe. A democracia não deve servir de trampolim para aqueles que só desejam acabar com ela. Jörg Haider, como ele mesmo faz questão de evidenciar através de suas declarações e ações, nos lembra muito de outro austríaco, comandante de partido minoritário e extremista, que chegou a chanceler através de uma coalizão oportunista. Hitler e Haider são farinhas do mesmo saco, e os austríacos deveriam ter aprendido que não se faz pão com tal farinha", diz Rosenthal. Schüssel, o vilão? – Muitos responsabilizam o atual chanceler Wolfgang Schüssel pela ascensão da extrema direita. "Schüssel é um oportunista: ele é o grande responsável por esta situação", diz Kurt Helm, um dos poucos manifestantes que ficaram até o fim das demonstrações em frente à sede do Partido do Povo no centro de Viena. Ele se referia ao fato de o atual primeiro-ministro ter feito o impensável para empunhar o poder. Schüssel, ainda em campanha para as eleições gerais em outubro passado, declarou em palanque que nunca iria confabular com Haider, e passaria à oposição caso seu partido ficasse em terceiro lugar na contagem final dos votos. Quando os resultados ficaram conhecidos verificou-se que o Partido do Povo ganhou o mesmo número de cadeiras no Parlamento que o Partido da Liberdade, mas recebeu 417 votos a menos que este, ficando assim na terceira colocação. "O que deveríamos fazer? Se não fosse feita a coalizão, o presidente Klestil teria de marcar novas eleições, e desta vez o Partido da Liberdade ganharia disparado. Aí Haider governaria sozinho. É isto que a União Européia desejava?", justifica a secretária do PP, Maria Kallatt.

Na pacata Braunau am Inn, na parte alta da Áustria e à distância de, digamos, um tiro da cidade bávara de Simbach, as 18 mil almas que vivem nas imaculadas ruas locais há muito aprenderam a fazer uma espécie de corte qualitativo em seu passado. Na praça Palmpark há uma estátua homenageando um livreiro. Não importa que o homem fosse filho de outra cidade, Nürnberg. Afinal, foi naquele mesmo solo que o mártir Johannes Palm foi fuzilado em 1806 pelas tropas napoleônicas, pelo crime de vender literatura patriótica. Num café nas vizinhanças da estátua, aqueles que já colocaram a língua de molho em schnapps não têm vergonha em dizer que estrangeiros – sejam eles os franceses de Napoleão, ou refugiados de outras partes – não merecem moleza. "Nossas portas estão abertas a todos os estrangeiros. Contanto que eles tenham passagem de volta a suas terras. Quem deseja ficar é imigrante. Nós já sofremos muito com invasores no passado", diz um dos fregueses. Quanto ao passado nazista, ninguém gosta que se toque no assunto. Esta parte é melhor ser deixada no esquecimento. Afinal foi em Braunau am Inn que em 1899 nasceu Adolf Hitler.

Jörg Haider, porém, insiste em manter o fantasma vivo com suas declarações e atitudes. Alguns dos primeiros pontos do programa de governo da nova coalizão – apesar da declaração em conjunto repudiando a xenofobia – tratam exatamente de fechar as fronteiras para novos imigrantes. ISTOÉ obteve acesso parcial ao documento antes de sua divulgação final. No programa se destaca o estabelecimento de cota zero para novas imigrações. Estrangeiros recém-chegados que desejem trabalhar no país só teriam vistos temporários para servir à indústria de turismo nas altas estações. Também se pretende extinguir o Ministério da Mulher e aumentar o valor do dinheiro dado na licença-maternidade das austríacas. Trata-se de um incentivo para que tenham mais bebês, num país onde a taxa de natalidade diminui assustadoramente e o crescimento de estangeiros é constante.

Ameaça econômica
Em termos econômicos, a política antiimigração de Haider se demonstra contraproducente. Os analistas econômicos independentes estão roucos de dizer que a prosperidade obtida pelo país se deve muito em parte à mão-de-obra barata proporcionada por estrangeiros. Como lembra Sabine Koppl, porta-voz da Comissão Austríaca de Turismo, "o turismo experimentou uma explosão no país, atingindo o recorde de US$ 14 bilhões no ano passado. E a mão-de-obra proporcionada pelos imigrantes é mais necessária do que nunca". E mais: com a elevação de Herr Haider, a figura de comando, já se organizam boicotes às estações de esqui. "Os cancelamentos já começaram", admitiu Koppl. A Bolsa de Valores de Viena também está sentindo o baque: neste ano se mostra como a segunda com piores rendimentos na Europa (a primeira é a da Bélgica). Assim, a Áustria de Herr Haider no final possa ser personificada pelo cambaleante Wolfgang Mitschke. Quando os estrangeiros forem embora, quem vai lhe servir schnapps? Ou, o que é pior: quem vai pagar a conta?