A psicanalista Graça Marques, 47 anos, é uma dessas pessoas obstinadas pela vida. Nascida em Porto Velho, desde cedo conviveu com a adversidade. "Quando não tinha o que comer, ia para o rio, pescava e levava o peixe para o jantar", lembra. Hoje, Graça continua com o dom de transformar o ruim em algo muito bom. Psicoterapeuta, trabalhando com pa-cientes com câncer, ela teve diagnóstico de câncer de mama recebido há cerca de um ano. Não se deu por vencida. Lutou, venceu a doença e a utilizou para iniciar um movimento de apoio ao paciente. Ela é a presidente do Núcleo de Apoio ao Paciente com Câncer (Napacan), criado com a finalidade de abrir espaço para as necessidades do doente. Uma das iniciativas do núcleo é distribuir cartilhas com endereços onde o paciente pode pedir ajuda. Graça falou a ISTOÉ sobre o Napacan.

ISTOÉQuem criou o Napacan?
Graça – Eu e um anjo amigo. Sou ex-paciente de câncer de mama e psicoterapeuta e psicooncologista. E tive a "sorte" de ter um câncer de mama.

ISTOÉSorte?
Graça – É brincadeira. Mas, de acordo como se encara, o câncer dá oportunidade para se rever profundamente.

ISTOÉO que aconteceu com você?
Graça – O câncer apareceu no dia 10 de abril do ano passado. De manhã estava bem, porque sempre faço o auto-exame de mama. De noite, no banho, saltou uma bola de gude do meu seio esquerdo. Sabia que era câncer pela textura, pela forma que estava preso.

ISTOÉO que você imaginou?
Graça – A primeira coisa foi: "Por que estou tendo um câncer com essa idade?" Estou querendo morrer? O câncer é uma boa desculpa. Ou seria algo para me acordar? Fiquei em conflito, chorei, tive medo. Até que entendi. O câncer foi uma deixa para realizar coisas importantes na área da saúde, como estudar mais a área de psicooncologia, já que não tinha tempo de frequentar uma nova universidade. E entendi que era importante chegar perto da morte e saber que ela é um merecimento, não desculpa para fugir de uma responsabilidade. Perguntei para Deus: "Posso morrer agora, devo morrer agora, mereço morrer agora?" Meu inconsciente me respondeu a cada noite: "Não. Você não merece morrer agora, não pode morrer agora, mas quer morrer agora, porque não quer assumir uma responsabilidade grande." E eu não tinha idéia de qual seria essa responsabilidade.

ISTOÉComo você descobriu?
Graça – A responsabilidade surgiu a partir da minha inquietação. Quando iniciei o tratamento, encontrei muitas falhas no sistema de saúde. Comecei a questionar o tratamento. Quando o primeiro cirurgião me disse que tinha de retirar todo o seio, disse que faria um tratamento e uma cirurgia menos radical. Levantei e saí.

ISTOÉPor quê?
Graça – Tinha de consultar pelo menos três médicos e depois tomar uma decisão. Mas no segundo ouvi a mesma barbaridade. Cheguei no terceiro e ele me disse a mesma coisa. Respondi que faria um tratamento e não operaria enquanto não sentisse que devesse operar.

ISTOÉO que a fazia tomar essa decisão?
Graça – Meu coração. Se prego tanto no meu trabalho psicoterápico que trato da alma do paciente, consigo salvá-lo das enrascadas da vida, na hora em que vivo um momento desse tenho de ter essa mesma verdade. E tomei alguns cuidados. Fiz quimioterapia e um tratamento complementar. Usei produtos considerados alternativos, como megadose de vitaminas, orientada por uma profissional, e meditação.

ISTOÉQuais foram os resultados?
Graça – Passei bem. Fiz a quimioterapia e a cirurgia conservadora. Comecei a radioterapia 30 dias depois e a terminei em novembro.

ISTOÉE você não tem mais nada?
Graça – Já tinha encerrado quando operei, mas a radioterapia complementou o tratamento. Faço exames mensalmente para controle.

ISTOÉFoi nesse processo que você pensou em criar o Napacan?
Graça – Durante o tratamento, pediram que escrevesse algo sobre os deveres, direitos e cuidados com o paciente com câncer. Escrevi a partir da minha experiência. Parece que a vida não é do paciente, mas do médico. Ele determina: "É um câncer, você tem de tratar assim, senão você morre e sou eu que estou mandando." O paciente não tem informação sobre a doença, o tratamento. Decidimos criar o Núcleo de Apoio ao Paciente com Câncer.

ISTOÉVocês também estão trabalhando numa frente parlamentar?
Graça – Sim. A frente foi criada com a deputada Teté Bezerra (PSDB-MT) e tem mais de 70 congressistas, que votarão leis em defesa do paciente, como a que prevê a distribuição gratuita, nos hospitais filantrópicos, de remédios à base de morfina para pacientes terminais. Hoje, ele só recebe se estiver hospitalizado. Em casa, morre de dor, se não puder comprar. Também estamos trabalhando em um projeto que determine que os planos de saúde cubram os remédios do doente. Eles só cobrem os injetáveis e de uma forma ambulatorial. Mas há algumas vitórias na Justiça. Um convênio teve de pagar um remédio para uma paciente depois que ela fez uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo.

ISTOÉO que há na cartilha preparada por vocês?
Graça – Direitos e deveres do paciente com câncer e endereços dos centros de atendimento do Brasil, públicos e filantrópicos. As pessoas podem também acessar nosso site www.napacancer.com.br

ISTOÉQuais os direitos do paciente?
Graça – Enquanto ele está em tratamento, não paga Imposto de Renda. Se for considerado inválido, mesmo depois do tratamento, não paga mais Imposto de Renda. Ele pode retirar o seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Pode quitar o financiamento da casa própria. Tudo depende do laudo médico e do tipo de câncer que ele tem.

ISTOÉComo obter esses direitos?
Graça – O médico fará um relatório dizendo a que tipo de tratamento você está se submetendo. E pode-se procurar o Ministério Público do Estado de São Paulo, onde há um grupo voltado para a saúde pública do consumidor (tels: 256-2287/ 257-2899 ramal 231).

ISTOÉOs direitos são só para casos graves?
Graça – Sim. Para aqueles que impossibilitam o paciente de trabalhar, de ter uma vida social.

ISTOÉPor que só agora foi criada uma entidade como o Napacan?
Graça – O câncer é uma doença antiga. As pessoas perderam a sensibilidade em relação ao problema. O câncer ainda traz o estigma da morte. Sofri muito preconceito dos meus colegas.

ISTOÉMédicos, psicólogos?
Graça – Todos. Eles diziam: "Não acho legal você falar por aí que tem câncer. Não vai pegar bem. Dizia: "Vou ter medo de que, vergonha de quê? Não é um defeito ter câncer." E se eu não puder contar às pessoas o que é ter um câncer sem me deixar vencer, como posso ser digna de respeito? Quero ser uma referência para o paciente com câncer.