Sábado, 19h40 – "Atenção unidades de resgate. Emergência P02. Repetindo: Papa 02", ecoa a voz grave do telegrafista no alto-falante. Poucos segundos depois, os três integrantes da Unidade de Resgate 302 entram apressados no veículo. Vencem o trânsito e chegam ao local da ocorrência em apenas seis minutos. A vítima, um motoqueiro derrubado por um carro, está consciente. Eles procuram por fraturas, imobilizam o rapaz e, em oito minutos, removem-no para o pronto-socorro mais próximo.

A cena poderia ser do filme Vivendo no limite, de Martin Scorsese, estrelado por Nicolas Cage, em que o ator encarna um soturno paramédico do subúrbio de Nova York. Mas na verdade é um fragmento da realidade de três bombeiros do 1º Grupamento de Busca e Salvamento de São Paulo: o sargento Edvaldo Alvarísio de Brito, 34 anos, o cabo Rogério José Ramos, 30, e o soldado Antonio Mizael da Silva, 35.

O filme foi baseado no livro de Joe Connelly e nele o espectador acompanha 48 horas da rotina de Frank Pierce, um paramédico nova-iorquino cansado de tragédias e atormentado pelos fantasmas de seus pacientes. Aqui, além da rotina fatigante, o bombeiro do Resgate ainda tem de conviver com a falta de regulamentação específica, horários malucos e salários miseráveis (R$ 300 iniciais. Com benefícios, chega a R$ 400), que o obrigam a ter outros empregos. Para aliviar o stress, o paramédico de Nicolas Cage entrega-se ao álcool. Nossos rapazes cultivam orquídeas nos fundos do quartel e praticam esportes.

Eficiência
O Resgate existe há dez anos e, segundo pesquisa Vox Populi, é um dos serviços que a população brasileira considera mais eficiente. Ligado à Polícia Militar, foi idealizado seguindo os padrões americanos, mas na prática há muitas diferenças. Nos EUA, a profissão é regulamentada e o paramédico pode ir muito além do salvamento básico, exercido no Brasil. A grande diferença, porém, é a utilização dos procedimentos invasivos, que incluem desde a aplicação de uma simples injeção até o uso de desfibriladores – tratamento com choque – nos casos de parada cardíaca.

Uma determinação antiga do Conselho Regional de Medicina impede que os bombeiros utilizem essas técnicas em salvamentos. Existe até um projeto de lei que classifica o bombeiro como socorrista, ou seja, tão leigo na prática da medicina de emergência quanto uma dona de casa. Ironicamente, os casos clínicos, quer dizer, os que necessitam de avaliação médica, somaram 26,9% de todos os atendimentos do Resgate no ano passado, perdendo apenas para os acidentes de trânsito, com 28,6%. "O resgate foi criado para atender apenas as emergências com trauma, mas como o sistema de saúde não comporta toda a demanda, ele acabou suprindo parte dessa necessidade", explica o major Luiz Carlos Wilke.

Trabalhar no Resgate não é tarefa para qualquer um. É necessário muito preparo físico e, acima de tudo, equilíbrio emocional para não entrar em parafuso. Prova disso é o horário de trabalho. Os turnos de cada bombeiro duram 24 horas corridas, com 48 horas de folga em seguida. "Nossa vida é muito corrida. Faço bico como motorista de ambulância e não tenho tempo para minha família", afirma Rogério. O cabo, que faz parte da tropa há 11 anos, é casado, tem dois filhos. Recebe pouco mais de R$ 800 líquidos por mês no Resgate. Isso porque conta com vários benefícios oferecidos à Polícia Militar, como o quinquênio – uma bonificação salarial concedida após cinco anos de serviço -, além de insalubridade e salário-família.

Autocontrole
Durante o horário de trabalho, cada equipe atende em média a 11 ocorrências. Mas poucos casos deixam marcas na memória. Aqueles que envolvem crianças são os piores. O cabo Rogério não esqueceu o de um garoto que caiu da janela de um apartamento na Brigadeiro Luiz Antonio. "Quando chegamos lá, ele ainda estava vivo. Tinha várias fraturas e nós o levamos ao Hospital das Clínicas, mas ele morreu no caminho. Não consegui mais trabalhar naquele dia", relembra Rogério. Uma ocorrência recente também mexeu com os sentimentos do soldado Mizael. Um Vectra bateu na traseira de um caminhão de lixo. O motorista do automóvel estava alcoolizado e um dos lixeiros teve a perna amputada. "A gente tem que ter muito autocontrole e focar a atenção no atendimento à vítima", diz o soldado.

Superar as tragédias é um desafio que se enfrenta sozinho. Não existe nenhum acompanhamento psicológico. "É uma demanda importante que a gente ainda não conseguiu suprir", admite o major Wilke. Um projeto que prevê avaliações periódicas, terapia em grupo e atendimento especial em grandes ocorrências está sendo estudado há dois anos, mas ainda não saiu do papel.

Mesmo com tantos problemas, os nossos paramédicos declaram-se felizes com o que fazem. "O resultado compensa tudo isso", afirma o sargento Edvaldo. Frank Pierce, em Vivendo no limite, diz que "salvar uma vida é como se apaixonar". Ele está certo. Mais do que isso, são todos apaixonados pela vida.