Café com Lucian Freud” não é uma biografia autorizada. Ainda bem. Lucian, imigrante alemão cuja família conseguira nova pátria na Inglaterra graças à fama do avô Sigmund, inventor da psicanálise, jogava, era irascível, muitas vezes violento, ganhava e perdia muito dinheiro e detestava qualquer tipo de invasão de privacidade. Mas ficou amigo do jornalista Geordie Greig, que nunca escondeu a intenção de contar sua história, e lhe abriu a vida. Depois de sua morte, em 2011, os depoimentos concedidos durante dez anos foram vertidos no ótimo livro de mais de 300 páginas que chega agora ao Brasil pela editora Record. A história do maior retratista da contemporaneidade foi de fato tão extraordinária quanto sua arte. O registro de Greig, editor do jornal “Mail on Sunday”, mostra que elas não se separam. Mais que isso, sem uma não se pode compreender totalmente a outra.

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INTIMIDADE
Lucian Freud em seu ateliê, quando pintava
"Night Portrait Facedown", em 1999

Lucian se tornou um dos pintores mais bem avaliados no planeta, criando o tipo de imagem banal nos nossos dias, o retrato. Filas se formam para ver exposições de suas imagens de pessoas reais, quase sempre retratadas na cama ou no sofá de seu ateliê. A que está em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp) acaba de ser prorrogada até dezembro por conta do sucesso de público. O livro decodifica um pouco desse fascínio quando revela a intimidade, a proximidade muitas vezes quase invasiva do pintor em relação a seus modelos vivos: amigos, artistas, filhos, o açougueiro, a dona do café, amantes, (muitas amantes), que passavam semanas e até meses dentro da casa-ateliê em Nothing Hill, submetidos ao seu implacável escrutínio visual e psicológico. Homens e mulheres se apaixonavam por seu retratista e a relação sexual era muitas vezes uma consequência natural ou até uma espécie de parte do processo de criação – não por outro motivo, além de 14 filhos assumidos, o gene de Lucian pode ter sido levado adiante por mais de 30 crianças bastardas.

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ELETRICIDADE
O pintor David Hockney passou mais de 100 horas no ateliê do amigo Lucian Freud
para a realização de seu retrato. "Ele tinha uma energia espantosa, quase elétrica.
De modo algum você vai adormecer com ele pintando", disse Hockney 

Lucian dizia não acreditar em psicanálise. Era absolutamente fascinado pelo avô, mas negava a revolução que ele tinha feito no campo da ciência, mencionando apenas sua primeira profissão, de zoólogo. Uma das explicações para a incômoda presença de animais em seus retratos – quase sempre dopados por soníferos com Veuve Clicquot –, inclusive, seria a influência profissional do autor de “A Interpretação dos Sonhos” na vida do neto. Para o biógrafo, o artista disse que o avô apreciava seu trabalho e que chegou a ter alguns em sua casa. Mas sua tia Anna Freud teria destruído as telas. “Acho que porque ele gostava muito delas”, explicou.

Lucian não era recluso. Pelo contrário, gostava de bares e cafés e circulava entre as altas rodas e os becos mais suspeitos da noite londrina com as mesmas calças amassadas e cachecol empoeirado. Falava alto, mal dos outros. Rompia com amigos e não se relacionava com os irmãos. Bebia muito e brigava aos 70 anos como no tempo da escola, em que os socos eram sua reação por não entender o que lhe diziam, pois, ao chegar ao país fugido do Holocausto, só sabia alemão.

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RECORDE
Acima, a capa da biografia escrita pelo jornalista americano Geordie Greig.
Abaixo, a tela mais cara do pintor, "Benefits Supervisor Sleeping",
vendida por us$ 33,6 milhões pela Sotheby’s

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A sua língua então passou a ser a arte. Primeiro o desenho, depois a pintura, que adquiriu força após a primeira desilusão amorosa, aos 19 anos. Lorna Wishart, objeto de muitos dos retratos de Freud, era 11 anos mais velha e casada. Mas deixou o jovem amante quando descobriu que ele também era infiel. Poucos anos depois, o pintor se casou coma sobrinha de Lorna, Kitty, com quem teve duas filhas: Annie e Annabel. Com idades próximas, as meninas tiveram uma babá, Katherine Mc Adam, que depois de posar como modelo se tornou amante de Lucian. Lucy, filha dessa união, nasceu em 1961, mesmo ano em que vieram ao mundo Isobel e Bella, suas irmãs, de mães diferentes. O biógrafo foi atrás das consequências dessa ciranda afetiva na vida dos muitos herdeiros do homem que não queria ter filhos, detestava bebês e acompanhou muito pouco da educação dos rebentos. Alguns tiraram seu sobrenome. “Mas a maior parte o amava sem reservas. Ele conseguia fazer com que lhe perdoassem qualquer coisa”, conta o jornalista, que colheu a última entrevista duas semanas antes de Lucian Freud morrer, aos 88 anos, vítima de câncer, cercado pelos amigos e pelos filhos.

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"Jovem com Rosas" é uma das telas que podem ser vistas até 15 de dezembro no Masp, em São Paulo. O quadro traz a imagem grávida de Kitty Garman capturada entre 1947 e 1948. Na exposição também podem ser vistos “Jovem num Vestido Verde” (1954), “Cabeça de Mulher” (1970) e “Jovem Nua com Ovo” (1980/81)

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