Trata-se de um caso clássico na medicina: na dose certa, o remédio cura. Na concentração errada, pode matar ou piorar o quadro. Infelizmente, no que diz respeito a grande parte dos casos de dor de cabeça, o que está prevalecendo é a segunda situação. Está crescendo em todo o mundo o número de indivíduos que, de tanto tomarem remédios contra o problema, só estão conseguindo agravar a doença. Eles tornaram-se vítimas da chamada cefaléia por excesso de medicação (cefaléia é o nome médico para dor de cabeça). Nos Estados Unidos, calcula-se que hoje este seja o motivo de metade dos casos de enxaquecas crônicas. No Brasil, estudos verificaram o abuso na utilização de drogas contra a dor em 65% de pacientes que tinham dor de cabeça diariamente. Pior. Na rotina dos consultórios especializados, aumenta dia a dia o atendimento a esse tipo de caso. “Isso é cada vez mais comum”, afirma a médica Carla Jevoux, secretária da Sociedade Brasileira de Cefaléia. A questão é tão grave que se tornou um dos principais temas de discussão do XXI Congresso Brasileiro de Cefaléia, realizado na última semana em Florianópolis, em Santa Catarina.

A princípio, o problema pode parecer paradoxal. Como um remédio contra a dor pode piorá-la? Porém, recentes pesquisas demonstraram que a questão não é tão intrigante quanto parece. Na verdade, o que ocorre é uma espécie de tentativa do organismo de fugir ao bombardeio de substâncias analgésicas a que é submetido. Descobriu-se que, quanto mais medicamentos, mais o corpo cria receptores para dor. É como se fossem abertas novas “janelas” para o sofrimento. O resultado é que o indivíduo fica mais vulnerável aos estímulos geradores da dor, como falta de sono, excesso de luminosidade ou um cheiro específico. Esse processo pode ser desencadeado quando uma pessoa toma remédios contra a dor por mais de dez dias por mês, durante três meses seguidos.

Esta é uma situação bastante comum por alguns motivos. O primeiro deles é que o acesso às medicações contra dor de cabeça é fácil (a maioria não precisa de receita médica para ser adquirida), incentivando a automedicação. “Além disso, os pacientes são estimulados a comprar por propagandas e balconistas de farmácia interessados em vender os produtos”, critica o médico Abouch Krymchantowski, especialista em cefaléia. Outro problema é o desconhecimento dos próprios médicos sobre a questão, o que muitas vezes os leva a dar orientações equivocadas aos pacientes, aumentando as doses de medicação desnecessariamente.

Um trabalho coordenado pela médica Carla Jevoux com pacientes de um centro especializado no tratamento da cefaléia do Rio de Janeiro deu uma idéia do resultado da combinação desses fatores. Entre os 65% de portadores de dor crônica que faziam uso excessivo de medicações, 32% recorriam a analgésicos simples (com apenas um composto ativo) e 67% utilizavam remédios com mais de um tipo de substância analgésica em sua composição. A pesquisa também revelou que o consumo de medicação por esses doentes variava de 3 a 4 comprimidos por dia.

Algumas iniciativas estão sendo tomadas para combater o crescimento da doença. Por um lado, a ciência está aprofundando suas investigações sobre a enfermidade. Entre os achados recentes está a constatação de que os indivíduos mais propensos apresentam baixo metabolismo no córtex orbitofrontal, área do cérebro responsável pelo processamento da dor. Também já se descobriu que os pacientes com cefaléia por excesso de medicação tendem a sofrer mais de ansiedade e de depressão do que os portadores de outros tipos de dor de cabeça. Em muitos deles também se observa um comportamento muito parecido com o manifestado por dependentes químicos, como se o ato de recorrer às medicações fosse um vício.

Todas essas informações ajudam a aprimorar o tratamento disponível. Hoje, ele consiste em uma atitude que, à primeira vista, assusta os pacientes: a interrupção completa do uso de remédios contra a dor. É o único jeito de quebrar o ciclo dor/medicamento/mais dor. Dá para se imaginar o impacto da orientação sobre quem estava acostumado a tomar medicamentos diariamente, como a estudante carioca Sabrina Nazar. “Fiquei assustada, mas confiei na minha médica”, conta. Durante mais de dois anos, ela chegou a recorrer a três comprimidos por dia para aplacar a dor de cabeça. Para ajudar na sua luta contra a doença, Sabrina foi medicada com um remédio contra a ansiedade e também foi liberada para tomar uma medicação somente nas crises mais sérias. O tratamento começou há nove meses. Há cinco, ela não tem mais episódios de enxaqueca.

A médica Elisa Reis, do Rio de Janeiro, é outra que tem o que comemorar. Ela sofreu de cefaléia durante um ano e meio, período no qual às vezes tomava mais de um comprimido por dia. Porém, a persistência da dor era tanta que ela chegava a faltar ao trabalho em alguns dias. Hoje em tratamento, que no seu caso também inclui uma medicação preventiva, ela experimenta um bom progresso. “Ainda tenho algumas crises, mas está bem mais tranqüilo. Posso inclusive trabalhar melhor”, diz.