De um lado, manifestantes sem-terra com foices e enxadas; de outro, policiais militares assustados. A combinação, que há três anos produziu a carnificina de Eldorado dos Carajás, ameaça se reeditar em Belém nesta segunda-feira. O MST e a Associação dos Policiais e Bombeiros Militares do Pará (Apomi) passaram a semana organizando atos públicos para a primeira sessão do julgamento dos 150 PMs acusados do massacre de 17 de julho de 1996, que deixou 19 sem-terra mortos e 69 feridos. As manifestações são parte do script de um espetáculo disputado por juízes, advogados, estudantes, políticos, ONGs e jornalistas do Brasil e do Exterior. Num auditório da Universidade do Amazonas, com 300 poltronas, foi montado o Tribunal do Júri. Trata-se de um duelo judicial que vai reapresentar ao mundo as cenas dantescas de corpos dilacerados, crânios partidos e execuções à queima-roupa que projetaram a cidadela de 14 mil habitantes do sul do Pará para os quatro cantos do planeta.

No tablado, sete jurados estarão numa situação nada invejável. Como os acusados desmontaram o cenário do crime – retirando corpos, recolhendo restos de massa encefálica e atrasando a entrega das armas –, não há provas documentais de culpa individual. Entre oficiais e subordinados, provavelmente deve haver inocentes. Por outro lado, como tornar impune um crime que chocou a humanidade e deixar parentes de tantas vítimas órfãos de Justiça? Na primeira sessão, serão julgados os comandantes da PM, em Marabá, coronel Mário Pantoja, e em Parauapebas, major José Maria Pereira de Oliveira, e o capitão Raimundo Lameira (Marabá). São os réus da primeira das 27 sessões previstas para até 3 de dezembro, sob o comando do juiz Ronaldo Valle. A segurança dos primeiros dias do julgamento está a cargo de 300 PMs, além de 200 homens do Batalhão de Choque que estarão de prontidão.

"Se forem inocentados, haverá uma reação imediata do nosso pessoal. Agora não dá para dizer qual será", dizia, quinta-feira, o líder sem-terra Raimundo Nonato, anunciando que mais de dois mil ativistas do MST chegariam à capital. "Estamos com tudo preparado para reagir, mas vamos aguardar o primeiro resultado", ponderava o cabo Antonio Cordeiro, presidente da Associação de Cabos e Soldados, outra entidade dos acusados. O presidente da Apomi, capitão Luiz Fernando Furtado, espera três mil nas manifestações pró-réus. Ele diz que o clima nos quartéis é tenso e vários soldados, desesperados com a possível condenação, já ameaçam abandonar a corporação e fugir. Cerca de 30 têm antecedentes criminais. Há pelo menos um foragido.

O promotor Marco Aurélio do Nascimento, ajudado por Luis Eduardo Greenhalgh (São Paulo) e Nilo Batista (Rio de Janeiro), pede a condenação dos 150 por homicídio qualificado (12 a 30 anos). Seus trunfos são os depoimentos e os laudos de vítimas abatidas a golpes de facão ou foice antes dos tiros. Outras foram atingidas por trás, o que desqualifica a tese de combate e fortalece a de massacre. Acontece que as armas entregues à perícia pelos batalhões de Marabá e de Parauapebas – que cercaram os 1.500 manifestantes na "Curva do S" (Km 100 da rodovia PA-150) – nada têm a ver com 11 das 12 balas encontradas nos cadáveres (outros 25 projéteis transpassaram os corpos). Os soldados que deixaram o quartel de Parauapebas no dia do massacre não registraram as armas que levavam. A suspeita é de que não eram do arsenal oficial, mas particulares.

 

Manobras "A falta de cautela das armas comprova a tese de convergência de vontades para um fim comum", diz o promotor, antecipando a tese de dolo coletivo num crime premeditado. As táticas da defesa, conflitantes entre si, são guardadas a sete chaves. Jânio Siqueira, advogado do major Oliveira e mais 80 PMs, alega que os policiais de Parauapebas não cometeram nenhum crime. "Quando o major chegou com as tropas, tudo estava consumado. O conflito foi do lado de Marabá", sustenta.

Acuado, Américo Leal, advogado do coronel Pantoja, diz que seu cliente recebeu ordens superiores para acabar de qualquer maneira com o bloqueio que os sem-terra faziam na estrada para obrigar o governo a ceder ônibus que os levassem até Marabá e Belém. O governador Almir Gabriel (PSDB) e o secretário de Segurança, Paulo Sette Câmara, dos quais teriam partido as ordens, foram inocentados pelo STJ. Américo promete provar que Pantoja nem sequer estava armado.

A dupla de advogados não chega a dizer que houve um suicídio coletivo, mas Américo Leal chega perto: "É estranho alguns corpos terem balas de espingarda e cortes de foice. Policiais não usam esse tipo de armas." Quem já disse algo parecido sobre a carnificina de Eldorado dos Carajás foi o legista Badan Palhares, aquele que sustenta que Suzana Marcolino se matou depois de assassinar Paulo César Farias.

A falta de provas individuais não é o único problema do promotor. O advogado do major Oliveira já anunciou que pretende manobrar, recusando algum jurado, para impedir que seu cliente seja julgado com os dois outros réus. "Julgar os três numa sessão é quase cerceamento de defesa", sinaliza Siqueira. Além disso, até o fim da semana passada o Tribunal de Justiça e o Ministério Público não se entendiam sobre as despesas com o deslocamento e hospedagem das testemunhas.

Uma delas é Rita Monteiro dos Reis, 53 anos, que ISTOÉ encontrou no mesmo casebre de madeira em que morava no dia do massacre, na Curva do S. Ela se escondeu do tiroteio, mas da fresta da janela viu sem-terra alvejados quando corriam para o mato. Rita é contra invasões e não demonstra simpatia pelo MST, mas cedeu a casa nova de madeira que construía na época para a Comissão Pastoral da Terra abrigar os pertences e fotografias do Memorial 17 de Julho. "Eu jamais moraria aqui, depois de ver tanto sangue e restos de cérebro pelo chão. Vou ter de fazer outra casa." Ela conta, indignada, que depois do massacre os militares estiveram em sua casa para conversar e puseram cinco sacos com sangue coagulado e punhados de massa encefálica na mesa de sua sala. "Aí eu fiquei brava e mandei eles tirarem aquela nojeira de lá."

 

Terra sagrada A "Curva do S", lugarejo visado por bandoleiros em trânsito entre Eldorado e Marabá, acabou virando ponto turístico. "Todo dia passa pelo menos um gringo por aqui para tirar foto", ri Elza Alves, 47 anos, que vendeu uma casa em Parauapebas para construir um casarão e uma lanchonete em frente ao memorial, erguido por um artista suíço com 19 troncos de castanheiras chamuscados. A curva fica a 23 quilômetros da Vila 17 de Abril, onde 690 famílias de sem-terra conseguiram no ano passado do Incra lotes de cinco alqueires na fazenda Macaxeira (desapropriada), além de empréstimos para a lavoura e a construção de casas de alvenaria na vila. O calor insuportável e a poeira fina, que se levanta a qualquer movimento e teima em ficar suspensa, desanimam os novos agricultores nesta época do ano. Não chove desde abril. Recolhidos, eles deixam as ruas à mercê de uma profusão de crianças. Nascem muitas na vila, que ainda não tem energia elétrica. Dezenas de assentados preferem vender a madeira nativa a trabalhar. Outros se dedicam aos sítios e aos esforços coletivos, que já resultaram na construção de uma farinheira, uma máquina de beneficiar arroz e uma granja.

"Fico aqui para sempre, mesmo se ganhar a indenização. Vou honrar meu sangue e o dos companheiros que tombaram. É minha terra sagrada", diz Domingos da Conceição, o "Garoto", 24 anos, que planeja vender no fim do ano por R$ 14 mil a mandioca que plantou em um alqueire. Garoto é um dos 69 mutilados que pedem indenizações ao governo estadual. Tem dificuldades para trabalhar porque a cirurgia de uma fratura exposta diminuiu sua perna direita em dois centímetros. A coluna dói e a perna vive inchada.

 

Lembranças horríveis Muitos pensam de forma oposta, especialmente os mais velhos. Ignácio Pereira, 59 anos, quer autorização do MST para vender o sítio. Ele perdeu um filho no massacre e, fingindo-se de morto, seguiu amontoado numa carroceria com os cadáveres por cem quilômetros até Marabá. "As lembranças são horríveis e minha mulher não quer viver aqui. Não tenho forças para cultivar a terra."

A força do assentado José Carlos Moreira, 27, não ajuda mais em nada. Ele até hoje tem, no cérebro, uma bala do massacre. A cabeça dói a cada esforço físico. "Se eu tirar a bala, morro ou fico doido." A mãe, Maria Raimunda, 47, e o pai, José Maria, 58, é que cuidam da terra. "Vou vender tudo e me mudar para um lugar melhor. A gente já sofreu demais", diz Maria Raimunda, desafiando as regras do MST.

A viúva Raimunda da Conceição Almeida, 57 anos, quer ficar na vila para compensar o sofrimento do marido, Leonardo, morto no massacre. Ela cuida do filho Leandro, oito anos. "Com o Leonardo vivo, a gente iria ganhar dinheiro porque ele trabalhava muito. Morreu certo de que ia conseguir a terra." O menino, que passa o dia na escola, não gosta de falar do massacre. "Às vezes ele chora e diz que queria muito que o tiro acertasse a perna do pai e não a cabeça."