Existe um tesouro guardado próximo a Serranópolis, no interior de Goiás. Lapidada em tempos ancestrais, esta preciosidade guarda registros dos povos primitivos que habitaram a região desde 11 mil anos atrás até o início do século. Um dos principais patrimônios arqueológicos da América do Sul, o paredão coberto de pinturas rupestres da Gruta das Araras – que juntamente com outros 40 sítios vizinhos foi descoberto por Binômino Lima, morador da região – vem sendo estudado por pesquisadores há mais de duas décadas. Os cálculos são de que cerca de 550 gerações compuseram este legado arqueológico. Inestimáveis para os que remontam a história da civilização local, os desenhos foram recentemente maculados.

Contratado pela Fundação Pró-natureza (Funatura) para construir uma passarela de madeira na gruta para manter os turistas longe do paredão, o carpinteiro Primo Perin deixou-se incorporar pelo espírito artístico dos antepassados. Após limpar uma pichação, Primo entusiasmou-se e aproveitou para retocar o painel pré-histórico. Deu tratos à bola antes de deduzir que o índio primitivo teria usado seivas vegetais para pintar. O carpinteiro afirma ter usado extratos de árvores para reavivar os traços dos desenhos. Crente de que estava cometendo uma boníssima ação, foi além, acrescentando novos elementos ao painel, num total de mais de 20 interferências.

Achou a lagartixa primitiva meio esquisita e não hesitou em equipar-lhe com dois pares de patinhas novas em folha. Ele ainda compôs um novo painel de sua própria lavra ao lado do original, inspirado nos traços indígenas. "O dano é irreparável", diz o antropólogo Altair Sales Barbosa, da Universidade Católica de Goiás. Ele trabalha desde 1975 no local, que lhe forneceu os elementos para sua tese de doutorado, Os povoadores do cerrado. "O sítio acumula um volume imenso de informações que servem para compreender nossa história. Cada alteração é como uma página arrancada de um livro." Para ele, o incidente deveu-se à falta de supervisão da Funatura. O trabalho de Primo durou 12 dias e foi acompanhado apenas em dois deles. "Já tínhamos trabalhado com Primo antes e não houve problema. Não havia como colocar uma pessoa por oito horas diárias o assistindo", argumenta Luciano Teixeira, da Funatura, ao avisar que daqui em diante ninguém mais trabalhará sem supervisão em locais do gênero.