Coleguinha que acabou de cruzar comigo. Aqui é o canguru, puxando o suco da confusão no implemento boliviano branco, de costas para Jundiaí e de frente para Louveira. Fala pra mim, fala, como está a rodagem lá na frente?

– Ah, tá jóia, tá beleza, canguru!

– O que o coleguinha quiser comentar sobre a rodagem, comenta. Estou levando comigo até as oitavas do verde e amarelo uma equipe de reportagem da revista IstoÉ, positiva?

– Positiva!"

Com esse diálogo travado pelo motorista Carlos Zalberto Gatto, 27 anos, pelo rádio PX do caminhão Volvo ano 1995, com um companheiro de estrada, fomos iniciados no sacrificado mundo dos caminhoneiros. Em uma viagem de carona, que começou na manhã da segunda-feira 2, em Jundiaí, interior de São Paulo, rumo a Porto Velho (RO), chamada no jargão da categoria como oitava região do País. Antes de assumir o volante, Gatto toma banho no posto ao lado do pátio da fábrica em que carrega o caminhão, troca o jeans pela bermuda para enfrentar o calor e se perfuma com desodorante e colônia da Natura que tira da nécessaire, na qual também leva comprimidos e gel para as intermináveis dores musculares. A ducha se repete a cada parada em uma tentativa de espantar o sono e o cansaço. Dorme quatro horas e fica 20 acordado. Quinto de uma família de quatro irmãos profissionais da estrada e três sobrinhos, é conhecido entre seus pares pelo codinome de Canguru.

Não toma rebite – droga usada para se manter acordado pela maioria dos caminhoneiros, que pode ser comprada em restaurantes da estrada, desde que se conheçam os esquemas –, mas bebe um coquetel estimulante de Taffman-E, Coca-Cola e pó de guaraná para aguentar o tranco. Gatto foi um dos motoristas que fecharam as estradas da região de Urânia, cidade do interior de São Paulo, onde mora, na greve dos caminhoneiros que parou o Brasil na semana retrasada. "Agora descobriram que somos gente e que temos a nossa importância", diz, orgulhoso do feito e, ao que parece, com a própria descoberta. Avesso à política, há alguns anos não comparece às urnas como protesto pela falta de esperança nos homens que fazem as leis. "Se não cumprirem o que nos prometeram vamos parar de novo", avisa, já irritado com o novo aumento do diesel anunciado para esta semana.

A revolta é compartilhada pelos seus companheiros com quem falamos pelo rádio nos Estados em que passamos. "Se o presidente não nos reconhece como meio de transporte então ele que carregue as mercadorias nas costas e as transporte", diz Vagalume ao cruzar com nosso caminhão na altura do município de Bariri. Na escola, Gatto só conheceu o que ensinaram no primeiro grau, mas sabe de cor cada buraco do itinerário que cumpre há três anos e meio e resume em sua dura rotina as razões da recente manifestação de desgosto com a política implantada pelo governo FHC. "É o bolso que está nos forçando a isso." Por uma viagem de seis mil quilômetros, que dura 15 dias sem tempo para dormir ou comer, ele ganha R$ 430 como empregado de uma transportadora. Pragmático, é casado com Sueli Cicareli, 27 anos, a sua "cristal", a quem simplesmente raptou da casa do pai depois de uma segunda tentativa de levá-la para morar com ele há um ano e meio.

Na primeira vez em que pretendia carregá-la na boléia encontrou o pai da moça no meio do caminho e ainda teve de dar carona para o velho, lembra, divertido. Em sua carteira de habilitação estão carimbados 12 pontos. "Acham que é privilégio nosso pedir para mudar o código de trânsito, mas não queremos fugir da fiscalização pela falta de cinto de segurança ou por ultrapassagem. É para não sermos multados por excesso de peso em balança por eixo, que é um absurdo", explica a quem não entendeu suas reivindicações e não conhece seu mundo. Na boléia de seu caminhão rodamos mais de dois mil quilômetros e dezenas de estradas. Em 55 horas de viagem cruzamos quatro Estados: São Paulo, Mato Grosso do Sul, Goiás e Mato Grosso, levando nas "costas" 27 toneladas do espumante Sidra Cereser. Passamos por asfaltos lisinhos, recapeados há pouco, mas na maior parte do percurso nos deparamos com muitos buracos, algumas crateras, falta de sinalização, placas enferrujadas, encobertas pelo mato e ausência de acostamento. Tivemos de fazer malabarismos para desviar de seis pedágios nas estradas paulistas. Por conta desse drible, a viagem foi aumentada em mais de quatro horas, ou seja, 200 quilômetros. Fugindo do caro pedágio (R$ 4,80 por eixo), os motoristas poupam as rodovias privatizadas e sucateiam ainda mais o asfalto das que ainda estão sob a responsabilidade do governo, como a SP 322 ou a Dom Pedro I, na região de Campinas. "Se não for assim ficamos ainda mais no prejuízo", justifica. Mais malabarismos ainda fazem os caminhoneiros para evitar a trepidação e chegar com a carga intacta no destino. Quase tombamos em uma curva na serra de Serranópolis, entre as cidades de Cassilândia, no Mato Grosso do Sul, e Jataí, em Goiás, por causa da pista irregular onde Canguru invocou toda a proteção divina a que está acostumado e ficamos parados no meio do nada, de madrugada, no interior de São Paulo, com um pneu furado pouco antes de cruzarmos o Estado. Em Petrovina, já no Mato Grosso, além de um desnível de pista no final da serra que já matou muitos motoristas, há uma sequência irracional de placas que indicam pista com defeito. "Em vez de arrumar, eles sinalizam", observa com razão. Em boa parte do trajeto em São Paulo e no Mato Grosso do Sul andamos de comboio, uma forma encontrada pelos caminhoneiros para se proteger dos assaltos. O irmão de Gatto é um retrato bem-acabado do salve-se quem puder que impera por essas bandas. Foi roubado no ano passado e ficou 18 horas amarrado no mato. Em vez de mulher e futebol, é da violência que os caminhoneiros falam no rádio na maior parte do tempo. Os piores pontos são na rodovia SP 225 sentido Brotas onde o caminhão é obrigado a andar a 20 km por hora na serra, o que os torna alvo fácil de ladrões à noite. Ou então no cruzamento da SP 332 sentido Ibitinga–Novo Horizonte com a SP 333 ou a BR 360 logo depois de Cuiabá sentido Rondônia. A fiscalização das cargas na estrada é outro motivo de atraso dos motoristas. No trevo do Lagarto, em Várzea Grande, no Mato Grosso, a região é apelidada de "propinolândia". É ali, dizem os caminhoneiros, que os "botinas" se vendem por até R$ 1. Nós, no entanto, não fomos parados uma única vez. "Deve ser porque estamos em três e eles não deixam testemunhas", diz Gatto. De Cuiabá, no final da tarde da quarta-feira 4, Gatto seguiu sozinho seu destino.

– Bom retorno, Canguru.

– Um balaio de recomendações para você também, positiva?

– Timba, timba.