Neste esporte, firula não tem vez. Fazer cera, menos ainda. Se o atleta não gosta de sujar o uniforme, está no lugar errado. Quase sempre ele termina a partida coberto de terra. Ou lama. Vaidoso? Nem pensar.

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Topetes e penteados caprichados – alguém aí pensou em Neymar e Cristiano Ronaldo? – não sobrevivem ao apito inicial. Medo de contusão? Esqueça. Esses guerreiros oferecem o próprio corpo como bloqueio para evitar que os rivais avancem. Quando deixam os gramados só com hematomas, estão no lucro: passaram pelo jogo livres de lesões. Cara feia é com eles mesmos – faz parte do plano de intimidação do adversário. As descrições acima correspondem a uma pequena parte do jeito de ser do rúgbi, esporte fascinante por essas e outras razões. O rúgbi oferece uma variedade de estratégias que poucos esportes são capazes de proporcionar. Seu grau de competitivade é alto (há farta quantidade de bons times pelo mundo) e sua premissa básica está na alma de qualquer criança. Quem, na infância, não correu, a toda velocidade, e driblou, enganou e escapou de um amigo alucinado para acabar com a farra? No rúgbi, isso é levado ao extremo, com um bônus: o atleta foge dos outros carregando uma bola nas mãos. No Brasil, pouca gente conhece o esporte, que volta a uma Olimpíada, a do Rio, depois de ausência de quase um século (a última participação foi em 1924). A boa notícia é que o anonimato está sendo combatido como jamais foi.
 
“Pode anotar: até 2030, seremos o segundo esporte mais praticado no Brasil”, diz o advogado Sami Arap, presidente da Confederação Brasileira de Rugby (CBRu). O discurso, repetido por outros dirigentes da entidade, parece um daqueles devaneios típicos de cartolas. É
difícil imaginar crianças e adolescentes carregando bolas ovais com as assinaturas de seus ídolos ou marmanjos discutindo no trabalho se o time de coração foi prejudicado pela arbitragem. Exemplos do Exterior, porém, mostram que a meta tem potencial para ser alcançada.
 
A International Rugby Board (IRB), entidade máxima da modalidade, possui cinco milhões de atletas filiados, distribuídos por mais de 120 países. Esses dados só ficam atrás do futebol. Para se ter uma ideia, a Copa do Mundo de Rúgbi é o terceiro maior evento esportivo internacional, com audiência global de quatro bilhões de pessoas. Fica atrás apenas da Copa do Mundo da Fifa e dos Jogos Olímpicos.
 
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Em pasíses como África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, os níveis de fanatismo dos torcedores equivalem à paixão, digamos, que são-paulinos e corintianos possuem por seus times. Replicar essa cultura esportiva no Brasil não será tarefa fácil, como sabem os dirigentes da CBRu. Um estudo elaborado pela consultoria Deloitte apontou os desafios que há pela frente. O rúgbi é um ilustre desconhecido para a maioria dos brasileiros, apesar de estar presente em 23 Estados do País. Seus dez mil atletas contam apenas com oito campos oficiais em todo o território nacional. A organização da maioria das federações e os cerca de 120 clubes existentes beiram o amadorismo.
 
Tudo isso afeta diretamente o nível técnico das competições regionais, de baixíssima qualidade. No alto rendimento, é preciso dar um enorme salto técnico para alcançar as principais potências. Atletas, dirigentes e apoiadores sabem que dificilmente haverá um momento tão oportuno quanto o atual. Pelo fato de o Brasil ser o país-sede da Olimpíada, tanto a equipe masculina quanto a feminina estarão entre as 12 seleções participantes dos Jogos de 2016 (as partidas deverão ser realizadas, segundo fontes ouvidas pela 2016, no Complexo Esportivo Deodoro, na zona oeste carioca). No Rio, o rúgbi voltará a fazer parte do programa olímpico em sua versão menos conhecida. No mundo, o Rugby 15, em que equipes de 15 jogadores disputam partidas com dois tempos de 40 minutos, é a mais praticada.
 
O formato escolhido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) foi o Rugby Sevens. Nele, cada time entra nos gramados com sete jogadores e a partida se divide em dois tempos corridos de sete minutos. Somente a final dura dois tempos de dez minutos. Dinâmica, a versão com menos jogadores é mais eficaz para prender a atenção de um público pouco familiarizado com o esporte. A própria fundação da CBRu, em 2010, deve-se à inclusão do esporte no calendário olímpico. Antes, a administração era feita pela Associação Brasileira de Rugby, que acabou incorporada. Para treinar ou competir, os atletas da seleção tiravam dinheiro do bolso até para comprar uniformes. Foi justamente a penúria que fez com que os jogadores alterassem, quase sem querer, o panorama da modalidade.
 
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Após conquistarem a classificação para a primeira divisão do sul-americano de Rugby 15, em 2008, encerrando um jejum de mais de uma década de derrotas para o Paraguai, os atletas enviaram uma série de e-mails pedindo módicas contribuições de R$ 10 para a preparação da equipe. Um deles caiu na caixa de mensagens de Eduardo Mufarej, sócio de um fundo de investimento e jogador nos tempos de escola. Ao fazer um depósito de R$ 500 e receber inúmeros contatos de agradecimento, Mufarej percebeu que a “situação realmente estava feia”. Procurou outros ex-praticantes de peso, como Jean-Marc Etlin, vice-presidente executivo do Itaú BBA, e Werner Grau, sócio do escritório Pinheiro Neto e filho de um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, além do advogado Sami Arap. Foi o primeiro passo para a criação do Grupo de Apoio ao Rugby Brasileiro (Grab).
 
Juntos, os empresários e executivos arrecadaram R$ 30 mil apenas em um jantar com amigos, em março de 2009, dinheiro que foi destinado para a preparação do time masculino. Mas as derrotas avassaladoras no sul-americano deixaram evidente um cenário ignorado em diversas outras entidades desportivas: o problema, na maioria das vezes, não se concentra na falta de verba, mas, sim, na qualidade da gestão. Para que futuras contribuições se revertessem em resultados, eles apresentaram um planejamento ambicioso e assumiram o comando da entidade, fundada no começo de 2010. “O rúgbi brasileiro hibernou enquanto outras modalidades avançaram”, diz o presidente da confederação, Sami Arap. “A gestão tem de ser profissionalizada. Precisamos mapear onde estão os recursos e buscá-los para colocar em prática uma estratégia de desenvolvimento.”
 
Entre 2011 e 2012, a CBRu duplicou suas receitas para R$ 6 milhões e aumentou em 25% as horas de transmissão dos eventos que promoveu. Isso em um ano marcado pela realização dos Jogos Olímpicos. As finais do Super 10 (campeonato nacional masculino da modalidade) obtiveram, em 2012, média de audiência superior à das transmissões da natação e do atletismo e próxima dos índices alcançados pela liga nacional de basquete. Os números comprovam o potencial do esporte no Brasil. Segundo pesquisa da consultoria Deloitte, o rúgbi aparece na opinião do público como a modalidade que mais vai crescer no País e a segunda que as pessoas têm maior curiosidade em conhecer. Profissionalizar a gestão foi outro passo importante da CBRu. Atualmente, a entidade segue um modelo que se assemelha a uma empresa listada na bolsa de valores. Além do presidente e do vice, há um conselho de administração com 11 integrantes. Cinco deles são independentes, como empresários de diversos ramos e a ex-jogadora Magic Paula. 
 
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Outros cinco fazem parte de clubes e federações. O último integrante é o próprio presidente do conselho, Eduardo Mufarej, sócio do fundo de investimento Tarpon. Nenhum deles poderá ser eleito para mais de dois mandatos nem terá direito a remuneração. Há também um conselho consultivo, igualmente sem salário, formado por membros influentes em diversas áreas que se reúnem com menos regularidade. Nele, cada um auxilia o esporte dentro de sua esfera de trabalho. Já a função de gerenciar o dia a dia da CBRu fica a cargo de profissionais pagos e recrutados no mercado. “Quando eu vou vender o rúgbi brasileiro, falo como se fosse o diretor de relações com investidores de uma empresa como a Vale”, compara Sami Arap, presidente da confederação. Pelo menos em um aspecto a estratégia deu
resultado. Atualmente, o rúgbi brasileiro conta com 17 patrocinadores. Além de contribuir com 20% das receitas totais da CBRu, eles também auxiliam na infraestrutura. O centro de treinamento da modalidade, por exemplo, fica em uma área cedida pela incorporadora BR Properties em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Inaugurado em 2011, o centro era uma das metas da Confederação estabelecidas em um documento com mais de 100 páginas.
 
Os objetivos não são nem um pouco modestos: conquistar uma medalha nos Jogos de 2016, chegar a um ouro olímpico até 2030 e se classificar para a Copa do Mundo de 15 em 2019. É com base nesses dados, atualizados constantemente, que a CBRu acredita que o rúgbi será o segundo esporte mais difundido do País e chegará a 500 mil praticantes até 2030. No documento, observa-se como a Confederação analisa a experiência de outros esportes. “Quem, na década de 70, imaginava que o vôlei seria o que é hoje?”, pergunta Victor Andrade, responsável pela gestão de marketing da confederação. “A geração de prata de 1984 foi planejada com sete anos de antecedência” diz, referindo-se à primeira medalha olímpica do vôlei brasileiro. Para elevar o nível técnico do rúgbi nacional, a CBRu assinou um contrato até 2017 com a Federação de Rugby de Canterbury e a equipe dos Crusaders, da Nova Zelândia. A ideia é que eles tragam a metodologia de trabalho, referência no mundo, para os gramados brasileiros.
 
Atualmente, além de técnicos que vêm ao Brasil esporadicamente para oferecer treinos específicos, dois profissionais da parceria residem no País. “Agora, a estrutura é profissional, só os jogadores continuam amadores”, diz Fernando Portugal, capitão da seleção brasileira. Aos 31 anos, o atleta do São José Rugby, time de São José dos Campos (SP), é um dos poucos no País que pode dizer que vive do esporte, mesmo que para isso tenha que atuar também fora dos gramados. Além de um patrocínio pessoal da Topper, trabalha como comentarista do canal Bandsports, possui uma coluna na rádio Bradesco Esportes FM, treina categorias de base e ainda desenvolve projetos de divulgação da modalidade em redes sociais. Com a experiência de ser um dos poucos que jogaram profissionalmente no Exterior – na Itália, por duas temporadas –, Portugal considera que o rúgbi brasileiro deixou de ser “um hobby amador para ser um amador de luxo”. A diferença, segundo ele, é que antes os atletas tiravam dinheiro do próprio bolso. “Agora, temos uniforme, condições de treino e viagens custeadas para competições. Mas não recebemos ajuda financeira.” 
 
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O sonho de viver do rúgbi começa a aparecer. Em março, a confederação montou uma seleção feminina permanente formada por 12 jogadoras. As remunerações chegam a R$ 2,5 mil por mês, mais a opção de moradia e o Bolsa Atleta pago pelo governo federal. O objetivo é que o número de contempladas chegue a 30. Na categoria sevens masculino, isso deve começar em junho, nas mesmas condições. “É importante reunir os atletas para manter um regime constante de treinamentos e acompanhar a evolução de cada um”, diz João Nogueira, superintendente técnico da confederação. Além do entrosamento, a nova rotina deve possibilitar que o Brasil avance em seus principais pontos fracos: preparação física e força. Para isso, está firmando acordos com universidades brasileiras na área de ciência aplicada ao esporte. A CBRu também planeja que os atletas tenham tempo para se aprimorar nos estudos. “Se a pessoa é formada em um determinado segmento, vamos ajudá-la a fazer, por exemplo, uma pós-gradução”, diz Nogueira. Um dos objetivos é que os atletas somem o conhecimento adquirido em campo com o obtido em suas carreiras, para que, mais tarde, possam contribuir de algum modo com a gestão do esporte. 
 
Considerado um dos principais talentos do rúgbi brasileiro, Lucas Duque, conhecido como Tanque, acha que todas essas iniciativas só vão funcionar se vierem acompanhadas do aumento do número de campeonatos realizados no Brasil. No masculino, só existe apenas uma competição de alto nível na categoria 15 e outra na Sevens. Apesar dessa deficiência, o atleta de 29 anos do São José Rugby já nota o avanço da modalidade. “Estive em Natal recentemente e fiquei surpreso ao ver que o rúgbi está se espalhando em vários Estados”, destaca. Alvo de convites para jogar no Exterior, ele possui uma rotina atribulada. Cursa faculdade de medicina no Rio de Janeiro e, entre um intervalo e outro, consegue fazer os treinos físicos em uma academia perto de casa. Quando tem folga na faculdade, vai a São José dos Campos, a 300 quilômetros de distância do Rio, treinar com a equipe. Mesmo assim, destaca-se nas competições internacionais.
 
No feminino, o 15 é praticamente inexistente, pelo baixo número de jogadoras. Há, atualmente, menos de 900 delas registradas no País. Para mudar esse cenário, a Confederação tenta atrair novas atletas para as competições de sevens. Em 2013, o circuito nacional ganhou mais uma etapa e uma nova equipe, formada com o apoio da Confederação. O número de torneios disputados pela seleção brasileira também cresceu: de quatro para seis. Em 2013, elas vão disputar as etapas do Sevens World Series, circuito mundial, e a Copa do Mundo da modalidade. Campeãs sul-americanas por nove vezes consecutivas, as garotas do rúgbi brasileiro têm um desafio diferente do masculino. Enquanto para os homens basta ir à Argentina para enfrentar uma potência mundial do esporte, elas precisam de adversárias mais distantes para desafiar equipes com tradição. Precisam ir à Oceania, Europa ou América do Norte. Um dos destaques do País, Paula Ishibashi, do clube paulistano Spac, ressalta as melhorias. “Não é o ideal ainda, mas dá para ver a mudança”, diz a atleta de 28 anos. “De dois anos e meio para cá, passaram a investir muito no alto rendimento.”
 
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A jogadora conta que, até pouco tempo atrás, a seleção se reunia para treinar apenas uma semana antes de uma competição internacional. Agora, o time será permanente. Apesar do cenário de dificuldades, as garotas contabilizam um feito: hastearam a bandeira brasileira pela primeira vez em uma Copa do Mundo, em Dubai, em 2009. De malas prontas para São Paulo, onde integrará a seleção fixa feminina, a capitã Júlia Sardá, do clube catarinense Desterro, poderá, enfim, deixar a rotina de professora de educação física para se dedicar exclusivamente ao rúgbi. A atleta, de 30 anos, espera que a evolução continue também nas escolas, que ignoram a modalidade, e na ampliação do número de agremiações dispostas a oferecer a prática desse esporte. Para treinar no Desterro, sediado em Florianópolis, paga mensalidade do próprio bolso. Apesar de acumular títulos, o clube de Santa Catarina não possui sede própria e aluga campos de treino. “A gente até fica preocupada de ganhar um troféu, porque não tem onde guardar”, brinca. A julgar pela disposição de atletas como ela, o rúgbi brasileiro tem tudo para sair da lama.