Aos 21 anos, Miguel de Cervantes, o autor de Dom Quixote, foi condenado pelo rei da Espanha a ter a mão direita amputada. Seu crime: prática do homossexualismo. Guardada num documento de 1569 redescoberto em 1820, essa revelação é um dos pilares, agora, do retrato de Cervantes composto pelo polêmico escritor espanhol Fernando Arrabal. Um escravo chamado Cervantes (Record, 304 págs., R$ 30) traça um perfil nada convencional de Cervantes, que aparece como um rapaz frágil e efeminado, asfixiado pelas mulheres da família (sintetizadas mais tarde em sua Dorotéia), que se transformou num homem inconstante.

Mesclando a frieza dos documentos, fartamente reproduzidos aliás, com divagações pessoais que o levam muitas vezes a transportar a si mesmo para dentro da narrativa, Arrabal escreveu uma estranha biografia num estilo barroco e rebuscado que pega o leitor desprevenido e que, às vezes, até o tortura.

Cervantes teve profissões inesperadas para um escritor. Foi soldado, cobrador de impostos – mas a falta de vocação para o trato do dinheiro lhe valeu até alguns meses de prisão, onde começou a escrever o Quixote, cuja primeira parte foi editada em 1605, quando ele já estava com 58 anos. Até sua morte, em 1616, Cervantes gastou as melhores energias na escrita de sua grande novela. Vivo, só conseguiu vender 800 exemplares do livro – que é hoje um dos mais lidos de todo o planeta.

Fernando Arrabal traça o retrato desse Cervantes escorregadio, de alma quebradiça, fixando-se nas ambiguidades e nos deslizes, compondo um personagem, em resumo, absolutamente moderno. E é essa a tese, a da modernidade de Cervantes, que ele tenta defender num livro que arrasta o leitor com a inequívoca inquietação que o perpassa. Mas ao mesmo tempo deixa em suspenso uma série de perguntas cruciais que Arrabal, ou por preguiça, ou por desinteresse, embora declare ter-se dedicado a uma longa pesquisa de oito anos, deixou de responder. Ainda assim, é um livro que abre novos atalhos para repensar as imagens em que os grandes mitos são dissolvidos, verdadeiros cárceres simbólicos em que gênios, como Miguel de Cervantes, seja por moralismo, seja pelo falso pudor, ou ainda pela preguiça intelectual, costumam congelar.