Zezé Di Camargo tem dormido menos de cinco horas por dia. Semanalmente passa 20 horas gravando o programa global Amigos & amigos e desde o início de junho despende boa parte das tardes num estúdio onde finaliza o nono disco da dupla que faz com o irmão Luciano. Sem contar a média de quatro shows semanais, uma rotina que lhe garante rendimentos milionários, mas que poderiam ser ainda maiores caso a lei dos direitos autorais fosse efetivamente cumprida. "É um descaso o que fazem com os artistas. Cheguei a perder mais de R$ 300 mil por ano", reclama Zezé. A lamentação do sertanejo tem ritmo de denúncia. Em 1997, ele e Luciano faziam a média de 15 shows por mês com cachês que variavam de R$ 60 mil a R$ 65 mil e já estavam no topo da lista dos mais tocados pelas rádios do País. Na época, a título de direito autoral dos próprios espetáculos, recebiam mensalmente irrisórios R$ 700. Contrataram, então, um procurador apenas para cuidar desta questão. De um mês para o outro, a receita da dupla com direitos autorais nos shows saltou para R$ 25 mil.

Os números revelam uma fraude milionária e ninguém sabe para onde vai o dinheiro. A forma de arrecadar e distribuir o direito autoral no Brasil é complexa, burocrática e sem transparência. Estes acordes dissonantes partem do Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais, conhecido como Ecad, entidade responsável por fiscalizar todas as vezes que uma música é tocada. Também cabe a ela cobrar das emissoras de rádio e tevê, dos produtores de shows, das gravadoras e até dos bares, hotéis e restaurantes os direitos autorais dos artistas e fazer a distribuição do dinheiro a seus verdadeiros donos. A primeira parte da partitura é cumprida com rigor e pirotecnia. Neste ano, o Ecad proibiu a realização de festas juninas em escolas e há duas semanas vem protagonizando uma briga jurídica com a Rede Globo, chegando a ameaçar a emissora com a proibição de colocar qualquer música em sua programação. Isso porque até 30 de junho a Globo repassava mensalmente ao Ecad 2,5% sobre toda a sua receita, mas resolveu não renovar o contrato. A superintendente do Ecad, Glória Braga, é enfática. "Não temos pago os valores corretos porque muitas rádios e televisões não nos pagam." Para os artistas, a explicação não convence. Embora admitam que a arrecadação poderia aumentar, eles entendem que o problema maior está na distribuição do dinheiro.

Netinho, do grupo de pagode-glitter Negritude Júnior, precisou recorrer aos serviços de William Fernando – o mesmo que ajudou Zezé a multiplicar seus vencimentos – para receber os direitos autorais de seus shows. A receita do pagodeiro, após a contratação do procurador, aumentou em mais de 400%. Chitãozinho & Xororó precisam urgentemente dos mesmos serviços. Só em 1999, a dupla fez mais de 60 shows e não recebeu, até o início de julho, um único centavo de direito autoral pelas apresentações. "Eles sabem muito bem cobrar da população, mas o dinheiro não chega nas mãos dos artistas", afirma Chitãozinho. O sertanejo tem razão. Afinal, na outra ponta da história está o público consumidor de música e não apenas as emissoras de rádio e tevê, como argumenta Glória. No valor do ingresso de cada show estão embutidos cerca de 10% como direito autoral. O mesmo ocorre com o preço dos CDs.

Troca de letras – O sumiço do dinheiro relativo aos shows é apenas a parte mais visível desta melodia fora de tom. ISTOÉ obteve um documento do Ecad que remete a algumas situações absurdas. Trata-se de uma lista de compositores, intérpretes e músicas não identificadas, composta de 1.885 páginas preenchidas com letras microscópicas. Quem está na relação simplesmente não recebe. Na lista, figura por exemplo a marcha Cidade maravilhosa. Ao lado do título, registra-se o motivo da retenção do dinheiro devido aos herdeiros de André Filho, que compôs a música: "Obra não identificada." A superintendente do Ecad promete uma resolução. "Não sei dizer o que aconteceu, vamos investigar", diz. "Quanto a reter o dinheiro das músicas com algum erro na identificação, isso apenas mostra o cuidado extremo que temos."

O excesso de zelo, na verdade, bate na tecla da total falta de bom senso. Durante dois anos, o roqueiro Raul Seixas não recebeu parte de seus direitos autorais porque seu nome estava registrado no Ecad como Raul Santos Seixas. Ele se chamava Raul dos Santos Seixas. A lista mostra ainda uma extensa relação em que músicas como Regra três e Samba em prelúdio, de Vinícius de Moraes, tiveram seus direitos retidos sob a alegação de "produtor fonográfico pendente de identificação". Segundo Glória Braga, em casos assim, apenas o produtor não recebeu o porcentual a que tinha direito. "O autor e o intérprete receberam", afirma ela. A advogada Adriana Vendramini, responsável pelo controle dos direitos autorais de Vinícius, desmente: "Até o momento não recebemos essas execuções." A maracutaia é tão grande que Luciana de Moraes, filha do poetinha, abriu uma empresa para controlar os direitos dos compositores e hoje tem cerca de 60 clientes, entre eles Dorival Caymmi, Leila Pinheiro e Luiz Melodia. Dona Zica, a viúva de Cartola, autor de músicas conhecidíssimas e tocadas a granel como As rosas não falam, há dois meses não coloca um real no bolso. "Vinha recebendo menos de R$ 2 mil por mês, mas terei que pagar advogado para ver se a coisa melhora", diz.

Fim do monopólio – O autor ou intérprete que não reclamar seu direito em cinco anos acaba perdendo tudo. O dinheiro, nesse caso, deveria ser colocado em um cofre comum e depois distribuído para todos os artistas. Serge Vitor Hours, presidente da Central Nacional de Direitos de Execução (CNDE), entidade criada recentemente para se contrapor ao polêmico Ecad, conta que o atual sistema cria dificuldades de propósito. "Envolve muito dinheiro e ninguém sabe onde está, mas foi efetivamente arrecadado."

Além dos problemas com o Ecad, muitos dos músicos também têm pendengas com as gravadoras. A viúva de Raul Seixas, Kika Seixas, trava uma antiga batalha judicial contra a ex-PolyGram, atual Universal Music, empresa com a qual Raul fez o seu primeiro contrato, em 1973. "Um dos problemas é que estava escrito que ele, se vendesse até 50 mil cópias, receberia 8% de royalties. Se chegasse entre 50 mil e 100 mil, receberia 9% e, se passasse de 100 mil, receberia 10%", sublinha Kika. "Acontece que Raul ultrapassou em muito as 100 mil cópias vendidas e a gravadora só pagou os royalties de 8%." O cantor e compositor Lobão sustenta que boa parte do sumiço do dinheiro dos artistas poderia ser evitada, caso as multinacionais do disco numerassem seus produtos. "Não temos controle do que vendemos", determina. "Com os CDs numerados, tanto a gravadora como o artista poderiam controlar facilmente o que cada um teria a receber."

A armadilha do direito autoral no Brasil prejudica os cantores e grupos, encarece os shows e tem impedido a realização de eventos internacionais. A banda irlandesa U2, por exemplo, segundo a advogada Mara Araújo Natacci, manifestou inúmeras vezes a vontade de voltar a tocar em solo brasileiro. Um desejo impossível de ser realizado por causa de pendências relativas ao recebimento de direitos autorais da última apresentação do grupo em São Paulo, em fevereiro de 1998. Na ocasião, o Ecad arrecadou cerca de US$ 800 mil. O dinheiro, porém, está retido, pois a instituição insiste em cobrar mais, ainda que os integrantes do U2 admitam ser aquela uma quantia aceitável. Enquanto a discussão tramita nos palcos da Justiça, os brasileiros não têm a perspectiva de ver seus astros de volta.