Reinaldo de Souza assiste há 48 anos o vai-e-vem de trens e passageiros na Estação da Luz, no centro de São Paulo. Sentado em sua bancada de engraxate, ele relembra saudoso o tempo em que sob as arcadas de ferro inglesas circulavam políticos e gente educada. "A vida era mais calma e o povo mais respeitoso", diz. Souza se orgulha de ter tido entre seus clientes personagens ilustres como Jânio Quadros e Café Filho. "Jânio, mocinho, estava em campanha. Sentou-se e foi logo perguntando quem eu achava que ia ganhar. Não se identificou e ficou todo feliz quando eu disse que ia dar Jânio na cabeça." Hoje, a clientela é menor e mais anônima e a monumental estação, patrimônio histórico estadual desde 1976, está carente de reparos. Por isso mesmo, o rosto de Souza se abre num largo sorriso quando ele ouve falar do Projeto 100 Anos Luz, lançado pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Com apoio da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e de parcerias com a iniciativa privada, a empresa pretende recuperar todo o patrimônio ferroviário, a começar pela estação. As 70 mil pessoas que usam a estação diariamente seriam os primeiros beneficiários da empreitada. Sem contar a própria cidade, que recuperaria um grande acervo histórico. "A privatização do transporte ferroviário não previu o cuidado com o material recolhido de antigas estações e ferrovias", informa Maria Inês Dias Mazzoco, coordenadora de preservação ferroviária da RFFSA em São Paulo. A adequação, cujos detalhes técnicos ainda estão em estudos, será feita pela CPTM, mas já se sabe que serão necessários cerca de US$ 15 milhões só para a restauração. A Editora Três é o primeiro parceiro do projeto, que será divulgado oficialmente no dia 5 de agosto durante a festa de lançamento da revista ISTOÉ Gente, nos salões da Luz. Antes disso, as duas empresas já compartilhavam uma pequena coincidência histórica. William Speers, superintendente da São Paulo Railway, que comandou a construção da estação, dá nome à rua onde funciona a Editora Três.

"O primeiro passo é restaurar o prédio e criar um centro documental. Além de revitalizar um marco de São Paulo, atenderemos à necessidade de integrar os transportes na cidade", esclarece Maria Inês, há 21 anos na empresa e representante da quarta geração de ferroviários de sua família. "Quando menina, me impressionavam as proporções das portas e janelas", conta. Idealizada e trazida quase toda da Inglaterra – grades, tijolos, parafusos e até o madeiramento (pinho de riga), tudo passou pelos portos ingleses –, a estação permanece quase inalterada. As poucas mudanças no prédio de 25 mil metros quadrados ocorreram depois de 1946, quando a São Paulo Railway Company, responsável pela estação, passou seu patrimônio ao Estado. Um dia antes da transferência, um incêndio, tido como criminoso, destruiu boa parte do prédio e deixou vulnerável a torre do relógio, réplica da torre da abadia londrina de Westminster. Foram colocadas oito colunas no saguão principal para sustentá-la e construiu-se no mesmo estilo mais um andar na área afetada. Na última década, o prédio esteve para ser restaurado duas vezes, mas os programas não se concretizaram.

Imensa relíquia, a Estação da Luz foi ao mesmo tempo símbolo e alavanca da opulenta fase dos barões do café, quando São Paulo se destacou definitivamente. "A capital significava tão pouco politicamente que a Convenção Republicana, em 1873, aconteceu em Itu, não aqui", atesta Júlio Katinski, professor titular de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A criação da famosa linha férrea Santos–Jundiaí, em 1867, transformou a cidade em corredor de escoamento da produção agrícola. E, no final da década de 80, o Estado de São Paulo sozinho produzia dois terços do café de todo o planeta. A construção da Estação da Luz em 1900 coroou esse crescimento.

"O restaurante da estação e o Jardim da Luz eram o ponto de encontro da elite da cidade", conta o professor, 67 anos. Quanto ao projeto arquitetônico, ele comenta: "É uma obra lindíssima, de concepção ainda muito atual", descreve. Do ponto de vista urbanístico, é um projeto perfeito. "Passamos da carruagem aos carros arrojados, a cidade cresceu, mas nunca foi truncada pela estação. A Luz continua até hoje servindo à cidade dentro de sua vocação original", defende Maria Inês. Todo paulista pode assinar embaixo.