Sem caminhão, o Brasil pára", diz o adesivo na traseira de milhares dos grandalhões que transportam mais de 63% da produção nacional. O que o brasileiro descobriu desde a segunda-feira 26 é que, com eles, o País também pode parar. A greve – não um simples protesto – dos caminhoneiros autônomos fechou as principais estradas, paralisou fábricas, impediu entregas do comércio, afetou o abastecimento de metrópoles e provocou um prejuízo na economia que pode atingir a casa dos bilhões. Expôs ainda uma insatisfação generalizada, até então desconhecida dos habitantes das grandes cidades. Foi radical ao bloquear totalmente rodovias, coagir outros motoristas à adesão e impedir o direito de trânsito de muitos cidadãos. Causou antipatia ao provocar o desperdício de alimentos num país onde parte da população passa fome. Mas, ao mesmo tempo, desnudou o caos do sistema de transportes brasileiro, questão estratégica para quem agora pensa e discursa sobre desenvolvimento. Revelou ainda um total despreparo do Planalto para prevenir e lidar com situações críticas. "Ficamos preocupados com a demora do governo. Essa greve não deveria durar nem 48 horas", admitiu Nélio Botelho, líder da União Brasil Caminhoneiro, uma organização paralela aos sindicatos, que emergiu com a mobilização e negociou em Brasília a extensa pauta de reivindicações dos motoristas, que incluía de redução nas tarifas dos pedágios à melhoria das condições de segurança nas estradas.

Somente no quarto dia em que as rodovias estavam paralisadas, na manhã da quinta-feira 29, o presidente Fernando Henrique Cardoso se deu conta dos prejuízos causados pela greve e convocou seis ministros para uma reunião no Palácio da Alvorada. Concluíram em duas horas de conversa que a força do movimento se devia ao apoio das entidades patronais também interessadas no atendimento da pauta de reivindicações. Foi do ministro da Agricultura, Pratini de Moraes, o argumento decisivo para que o governo resolvesse ceder aos caminhoneiros. "O prejuízo causado pela paralisação é muito grande, sai mais barato atender o que eles estão pedindo", calculou Pratini, que recebeu apoio do seu colega do Trabalho, Francisco Dornelles, principal interlocutor de Botelho no Planalto. O governo FHC teve de ceder a um movimento que havia subestimado e com o qual demorou a negociar. A greve só pegou o governo de surpresa porque mais uma vez falhou o serviço de inteligência do Planalto, comandado pelo chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso. Numa irresistível vocação para se meter em trapalhadas, os arapongas palacianos limitaram-se a colecionar panfletos, sem lhes dar a menor importância. Durante seis meses, caminhoneiros distribuíram manifestos nas estradas, deram indicações de que a greve ia acontecer em plena Rádio Globo do Rio e escolheram os melhores pontos para fazer bloqueios. Normalmente postos de combustíveis bem-equipados com telefones e rádios.

Acorda, Padilha – Mal-informado, o governo tomou um susto na manhã da segunda-feira 26. Um dos primeiros pontos a concentrar grevistas foi o quilômetro 390 da rodovia 364, no posto Mangueirão, bem na entrada de Cuiabá, no Mato Grosso. Lá, os caminhoneiros saíram direto da festa em homenagem a São Cristóvão – o padroeiro dos motoristas – para a greve, por volta das três horas da manhã. Enquanto eles paravam de rodar País afora, o ministro Eliseu Padilha participava de uma solenidade no porto do Rio. Não sabia de nada, foi informado pelos repórteres. "A partir daí, agimos rapidamente para começar a negociação", conta Padilha. Na versão de Nélio Botelho, o ministro não foi tão ágil. Ele disse que, como não havia sido procurado, tomou a iniciativa de telefonar para Padilha na terça-feira 27, segundo dia de greve. "Ministro, nós precisamos conversar", sugeriu. A confusão não parou aí. Uma verdadeira multidão compareceu no dia seguinte à reunião com o ministro, em São Paulo. Depois de muito bate-boca, Padilha finalmente começou a negociar com um grupo menor. O primeiro impasse foi em relação à suspensão de novos aumentos do diesel. Padilha, então, telefonou para FHC e obteve o sinal verde para prometer que este combustível não será reajustado junto com os demais.

O Planalto colhia o que havia plantado durante os últimos quatro anos. Na pressa de obter recursos via privatização e, assim, parar de gastar em manutenção, concedeu o direito de exploração de algumas rodovias à iniciativa privada sem se preocupar em criar uma política de tarifas que não comprometesse demais os custos dos transportadores. Alguns Estados seguiram o exemplo. Na urgência de promover um ajuste fiscal, cortou o orçamento do Ministério, que deixou a malha rodoviária se transformar num queijo suíço. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) há 32 mil quilômetros de estradas no Brasil que necessitam de recuperação rápida. Não apenas por conta da desvalorização cambial, promoveu seguidos aumentos nos preços dos combustíveis.

Desespero – Quando caminhoneiros autônomos decidiram cruzar os braços, como aconteceu na última semana, tomavam uma atitude desesperada. Afinal, eles sacrificam o próprio bolso a cada dia parado. "A única motivação para o protesto é porque a classe está passando fome há muito tempo. Agimos mais pela dor do que pelo amor", define José Antônio da Silva, o China, presidente da União Nacional dos Caminhoneiros (Unicam), uma das dezenas de entidades do setor e que ajudou a organizar a greve em São Paulo e Mato Grosso. Mesmo quem só parou na estrada porque foi obrigado ou intimidado apoiou as reivindicações. "Gasta-se muito na estrada e, no final das contas, não compensa", constata Luciano Timóteo de Oliveira, que parou na noite da quarta-feira 28 seu caminhão de mudanças na rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio e foi o grande foco da greve por ser o maior corredor rodoviário do País. "Vou largar esta vida, vender este caminhão velho e investir num boteco em Guarulhos."

Os prejuízos de Norte a Sul do País ainda estão sendo contados. A fábrica da Volks em Resende parou por 48 horas, assim como as da Fiat e da Mercedes, em Minas. Dez das 11 unidades de produção da Sadia também foram interrompidas devido à falta de insumos. A indústria de alimentos foi uma das mais atingidas. O segmento com perdas mais visíveis foi o do comércio de hortifrutigranjeiros. Na maior central atacadista de São Paulo, a Ceagesp, apenas 96 dos 1.200 caminhões que descarregam diariamente chegaram na quinta-feira 29. "A melancia que custava R$ 3 já passou para R$ 5", reclamava o feirante Rovaldo Brás. Se a greve se estendesse, o impacto na inflação seria inevitável. "Embora o abastecimento tenha começado a se estabilizar nesta sexta-feira, os preços demoram um pouco mais a recuar. Por isso, recomendamos que os produtos que subiram, como cenoura e maçã, sejam evitados", disse o secretário de Agricultura e Abastecimento do Rio, Luiz Rogério Magalhães. "A gente poderia ter parado em casa mesmo, mas se não causar todo este tumulto ninguém nos ouve", lamenta o paulista Giuliano de Jorge, que estacionou na segunda-feira 26 na Dutra.

Para tentar reverter o caos que se instalava no País, o Planalto ameaçou endurecer o jogo na quarta-feira 28 e convocar as Forças Armadas para desobstruir as estradas. Apesar de ter colocado o Exército de prontidão, tudo não passou de um blefe. Na dúvida, o governador de São Paulo, Mário Covas, tratou de rechaçar a medida. "Aqui não será preciso", garantiu. Além do discurso, Covas partiu para a ação. Sobrevoou estradas e admitiu negociar com grevistas os preços dos pedágios em São Paulo. Há muito o que discutir neste ponto. Os postos de cobranças no Estado saltaram de 31 em 1997 para 72, as tarifas tiveram aumentos que ultrapassam o limite de 8,01% da variação da inflação de maio de 1998 a maio de 1999 – um trecho da SP 344 subiu 16,67% –, tampouco se respeita a exigência legal de manutenção de vias alternativas para quem não quer usar as estradas com pedágio. De todo modo, Covas se expôs. "Vamos nos contrapor a esta inércia do governo federal", desabafava para seus assessores.

 

Nova greve – No dia seguinte, o governador paulista conversou por telefone com Fernando Henrique e passou sua impressão de que os caminhoneiros não tinham disposição para confrontos com a polícia. Só isto explica o desfecho pacífico do movimento, apesar de sua desorganização. O problema é que sobram dissidências entre os representantes dos caminhoneiros. Tão logo a greve terminou, já surgiram as primeiras críticas. "O Nélio foi um traidor, aceitou a proposta do governo, que não diz respeito às estradas estaduais, que são em maior número. Para nós, isso não vai resolver nada", revoltou-se o caminhoneiro Moacir Dantas. "O Nélio foi como o cometa Halley. Líder de um dia", ironizou China, presidente da Unicam, que promete organizar para breve uma nova paralisação. Ao que tudo indica, o governo agora tem uma carga de pólvora a rodar todos os dias pelas estradas do Brasil.

Colaboraram: Adriana Holanda, André Vieira, Clarisse Meireles, Francisco Alves Filho, Ines Garçoni, Luísa Alcalde, Maria Isabel Pereira e Mário Simas Filho

 

"Só nós podemos parar o Brasil"

O homem que parou o Brasil, Nélio Botelho, dava os seus recados diários no programa A hora do caminhoneiro, que vai ao ar às 4h45 na Rádio Globo, e enviou nos últimos meses mais de 300 mil panfletos por mala direta. Casado, pai de três filhos, vive modestamente numa casa de três quartos (herança recebida pela mulher, Angela Maria) na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Há 15 anos está fora das estradas, atuando no movimento sindical. Seu caminhão, um Volvo com capacidade para 30 toneladas, transporta combustível para a Petrobras e é conduzido por um amigo. Com o aluguel do caminhão e gratificações que recebe pelo trabalho sindical, tem uma renda bruta de R$ 2,5 mil. O homem que o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, trata por "doutor Botelho" só cursou até o terceiro ano ginasial, mas seus três filhos frequentam a universidade. A idéia de fazer um movimento nacional tomou corpo quando há sete anos ele assistiu ao filme Hoffa, um caminhoneiro que se tornou o maior líder sindical americano, vivido nas telas por Jack Nicholson. No avião, voltando de Brasília para o Rio, onde foi recebido em festa pelos seus companheiros, Botelho deu esta entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – Como o sr. se sente depois de ter parado o Brasil ?
Nélio Botelho Bastante cansado. Há 20 dias que não durmo uma noite inteira. Mas valeu a pena. Considero uma vitória total da classe. Vamos sair do submundo e ocupar o espaço que merecemos na sociedade.

ISTOÉ Qual o principal objetivo dessa greve?
Botelho A paralisação surpreendeu todo mundo. Foi um movimento inédito com o objetivo de adquirir o respeito e fazer com que o povo descubra a nossa importância. O caminhoneiro é um verdadeiro herói, até hoje foi tremendamente injustiçado. Ele não tem destino, vai onde aparece carga, não tem direito à saúde, higiene, segurança.

ISTOÉ Quais foram os pontos mais importantes do acordo?
Botelho A solução para a tabela de fretes, a suspensão do aumento do pedágio e do óleo diesel e a modificação do critério de perda de pontos na carteira de motorista do caminhoneiro. Mas vamos conseguir 100% dos itens.

ISTOÉ O que leva o sr. a crer que o governo vai ceder em tudo?
Botelho O caminhoneiro mostrou a sua força, atingiu o País, a economia e isso vai pesar na inflação do mês. Mostramos ser a classe com maior poder de fogo. Só nós podemos parar o Brasil.

ISTOÉ O sr. acredita que o movimento dos caminhoneiros pode influenciar outras categorias?
Botelho Evidentemente os sindicatos podem até querer ter o poder de fogo dos caminhoneiros, mas ninguém vai alcançar a dimensão que conseguimos. Enquanto os sem-terra têm enxadas, nós paramos o País.

ISTOÉ O sr. teve medo de perder o controle do movimento?
Botelho Houve excessos que poderiam até tornar o movimento impopular. Ficamos preocupados com a demora do governo. Essa greve não deveria durar nem 48 horas. Mais um dia e o Brasil amanheceria num verdadeiro caos. Mas tínhamos uma perfeita comunicação com os membros do movimento e o controle estava garantido.

ISTOÉ Quais os planos da União Brasil Caminhoneiro?
Botelho O movimento será transformado numa federação. Será a entidade mais poderosa do Brasil e até do mundo.

ISTOÉ Possui planos pessoais?
Botelho Não tenho nenhuma pretensão político-partidária. Não quero ser candidato a nada, mas com a força que adquirimos queremos formar nossas próprias bancadas a nível municipal, estadual, federal e até presidencial.

ISTOÉ O sr. quer ver um caminhoneiro na Presidência?
Botelho Nós queremos influenciar na hora de eleger um presidente. Em nosso raio de ação temos dez milhões de votos, contando com os trabalhadores das oficinas mecânicas, dos postos de gasolina e outros.

ISTOÉ Em quem o sr. votou para presidente?
Botelho Em FHC nas duas vezes.

ISTOÉ Está arrependido?
Botelho Não.

ISTOÉ Das candidaturas que se apresentam para 2002, em quem votaria?
Botelho Ainda é muito cedo.

ISTOÉ O sr. votaria em Antônio Carlos Magalhães para presidente?
Botelho Por que não? Se for o melhor para o País… Mas não estou dizendo que ele é o meu candidato, a minha decisão ainda vai ser tomada.

Isabela Abdala