11/04/2007 - 10:00
Na posse do novo ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, o advogado e sociólogo José Vicente, 47 anos, presidente da ONG Afrobrás, dedicada à defesa da cultura negra, viveu uma situação infelizmente ainda comum para os que, como ele, são negros. Enquanto aguardava o início da cerimônia no Palácio do Planalto, Vicente, reitor da primeira universidade do País dedicada à cultura negra, a UniPalmares, foi confundido com seguranças e funcionários do cerimonial. “Pediram para que eu pegasse uma cadeira e me perguntaram onde era o banheiro. Essa é a prova de que o racismo continua por aí, atentando contra o equilíbrio social do País.” Nessa entrevista, Vicente (na verdade, o seu único sobrenome) comenta as afirmações da ministra de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, de que negro não gostar de branco é natural. Para ele, o racismo só acabará quando os afro-descendentes ocuparem de vez o seu lugar na política, na universidade e no mercado de trabalho. “Somos um país de sacis-pererês. Só temos uma perna da população atendida. A outra é simplesmente excluída de tudo.”
É preocupante. Oito em cada dez jovens que morrem até os 23 anos são negros. A mulher negra ganha 50% a menos que um homem negro e esse mesmo homem negro ganha metade do que um branco na mesma função e com a mesma qualificação. Temos quase dez programas infantis na tevê, nenhum deles apresentado por um negro. A maior universidade da América Latina, a USP, tem 5,4 mil professores. Desses, apenas quatro são afro-descendentes. Só 3,4% das 500 maiores empresas do país possuem negros em cargos de direção. Nas redações de jornais quase não há profissionais negros. E, olhe só, vivemos num País em que metade da população se assume como afro-descendente. O Brasil faz questão de esconder metade de sua população. Somos um país de sacis-pererês. Nos falta uma perna que é a outra metade, a dos excluídos de tudo. Precisamos de um país por inteiro. Precisamos mudar essa realidade.
Parece que ela estava buscando alguma coisa lá atrás e tentando fazer um comparativo com o presente. No que diz respeito ao passado, creio que a afirmação tem sentido. Num país com quase 400 anos de escravidão, e que após o seu término os negros permaneceram no porão, me parece natural que ocorram restrições e reservas contra aquele compreendido como opressor, no caso o branco. Qualquer pessoa em sã consciência chegaria a essa conclusão.
Não. São coisas distintas. Se você trouxer essa análise para os dias atuais, não resta dúvida de que a ponderação dela está desfocada, desatualizada. Quando a ministra diz “olha, o negro que reagisse a esse tipo de coisa agredindo o branco não estaria praticando o crime de racismo”, ela envereda por um caminho sem sustentação. Quem quer que discrimine o outro estará praticando crime de racismo. Seja quem for. Isso não se discute. O que não quero para mim não posso querer para o outro. Foi uma escorregada que não se justifica e não tem nenhum tipo de recepção na comunidade negra.
Em alguns casos, sim. Ele aprende em todos os espaços de socialização. É isso que ele vê nas revistas, no noticiário policial, nas novelas, no rádio, no seu entorno, nas músicas. Você lembra do cantor e humorista Tiririca? Em suas piadas, ele só consegue associar situações de marginalidade e de perigo à imagem do negro. O protagonista é sempre um negro. E Tiririca é mulato. Isso tem que mudar.
Estávamos num cenário de terra arrasada. Então, qualquer coisa que se faça é uma conquista extraordinária. A atuação da ministra está dentro de uma seqüência de vitórias até outro dia inimaginável para a comunidade. Temos um feriado em São Paulo, um museu no Parque do Ibirapuera, uma política de cotas e uma instituição de ensino superior, a UniPalmares, em São Paulo, focada nessa temática. Se isso fosse criado há dez anos, a Polícia Federal tinha botado todos os envolvidos com o projeto na cadeia. Então, quando comparamos passado e presente temos que sorrir. Afinal, temos só 120 anos da abolição, antes de 350 anos de escravidão.
Essa é a prova de que temos racismo e racistas no Brasil. E o mais grave é que tentaram transformar um ato explícito de racismo em crime de vandalismo, tentativa de homicídio. Não foi a primeira vez que aconteceu. É sempre da mesma forma, com o símbolo da Ku Klux Klan (organização racista criada nos EUA no século XIX) pintado nas paredes Ações desse tipo têm ocorrido nos últimos três anos, desde que foi instituída a política de cotas na universidade. Qualquer uma dessas atitudes criminosas tem que ser combatida com a letra da lei. Então, não vamos tapar o sol com a peneira. O racismo está aí. Na internet, o nível dos crimes de racismo é terrível. Então, vamos ter que pensar em novos remédios, em outras formas de atacar esse mal. O que já fizemos parece pouco.
Só se combate esse mal com medidas governamentais, sociais, educativas e com providências legais. Hoje racismo no Brasil é crime hediondo. A lei é importante, mas, por si só, não resolve o problema. O que ela faz é tentar manter o racismo em níveis aceitáveis. Devemos avançar na direção da educação e do respeito à tolerância. Esse princípio precisa ser abraçado pelo Estado, pela sociedade e ser tratado com seriedade.
Com educação. Onde as pessoas aprendem a discriminar? Na escola. No livro escolar, é Branca de Neve e os sete anões. Você nunca vê uma história de um negro. Os heróis são sempre os mesmos – brancos. E quando surge um negro, ele é representado como ladrão, sem-vergonha e bêbado. Não há herói negro, professor negro, coronel negro, desembargador negro, apresentador de televisão negro. O cara cresce nessa cultura, é uma questão cultural. E você só quebra isso com educação e uma nova abordagem da mídia.
Não é o ideal, mas é o que temos. Quando um paciente está à beira da morte, você precisa dar um choque para que ele recupere suas funções vitais. Depois inicia o tratamento. Com as cotas é a mesma coisa. Elas vieram para dar um choque e chamar a sociedade ao debate. O ideal seria se, no dia 14 de maio de 1888, em vez de dizer “vocês estão livres: atravessem a porteira e passem bem”, fosse dito “você está livre, mas aqui está o seu pedacinho de terra, as matrículas na escola para seus filhos e uma pensão por você ter ficado 350 anos escravizado.” Mas isso, como sabemos, não foi feito. Vivemos todo esse espaço de tempo assim e, apesar de tudo, sobrevivemos.
As cotas são o resultado da preguiça da nossa intelectualidade, de nossa academia em pensar uma solução para o problema do negro no Brasil. Eles nunca se preocuparam com isso. Nossos acadêmicos conseguiram fazer a seqüência do genoma da laranja e desenvolver avançadas pesquisas aeroespaciais, mas foram incapazes de pensar algo relevante para a questão racial. A universidade tem que entrar de cabeça nessa questão.
As cotas continuam incomodando muita gente. Existe uma apreensão, pois a temática da igualdade racial ganhou projeção. Pela legislação, a história do negro e a da África devem ser implementadas nas redes de ensino pública e privada. O Ministério Público tem atuado exigindo que as escolas cumpram essa determinação. O Ministério Público Federal do Trabalho está com mais de 200 ações contra empresas que não estão cumprindo a lei de cotas. Já são 44 as universidades federais que implementaram a lei. Cerca de 20 municípios determinaram cotas para negros nos concursos públicos. O funcionamento dessa engrenagem tem incomodado pessoas e instituições.
Pobre, qualquer que seja a cor, terá dificuldade. Mas ela será muito maior se você for pobre e negro. E 90% dos espaços sociais são ocupados por não negros. Você acha que seria justo qualquer ação que dificultasse ainda mais a vida de metade da população do País?
Não mais. Hoje, 90% dos jovens negros não estão nos campos de futebol ou nos palcos cantando rap. Eles têm batalhado, superado dificuldades e ocupado espaços até então inimagináveis. O ator Lázaro Ramos, por exemplo, é a prova da capacidade de superação do jovem negro. Ele atravessou toda a estrutura e, quando teve a oportunidade de mostrar o seu talento, foi lá e emplacou. Sua mulher, a atriz Thaís Araújo, também. E todos os outros, em todos os espaços. O problema é que o samba e o futebol são os únicos espaços em que a sociedade permite que o negro transite. Quando ele sai daí é que começa o problema.
Não, de forma alguma. E aí a gente percebe quanto é difícil destruir o racismo. O cara anda com o seu carrão na rua e a polícia pára. No restaurante, ele fica sentado e, muitas vezes, ninguém o atende. No shopping o cara não o atende na loja. Se colocássemos o (ex-secretário de Estado americano) Colin Powell e a (atual ocupante deste cargo) Condoleezza Rice numa BMW pelas ruas de São Paulo e um casal de brancos em uma outra, adivinhe quem a Rota iria parar? Nem é preciso responder.
Na favela não tem racismo. Todo mundo se irmana. Ali é o Brasil ideal. O problema é quando você começa a subir para os andares de cima e a contrariar os interesses dos que mandam neste país há 500 anos. É terrível.
Tínhamos a necessidade de que esse tema entrasse na agenda nacional. Conseguimos. Agora, precisamos fazer com que parte significativa dos negros possa ter capacidade de estar nos espaços de decisões. E o único caminho para isso é a conscientização de todos. Antes de tudo, o negro deve compreender que é preciso ter uma representação política, eleger seus vereadores, deputados, senadores. Começar a participar do jogo de forças, a defender territórios e a brigar pela manutenção de conquistas. Creio que, a partir daí, iremos levar nossa visão de mundo, nosso ponto de vista, nossas necessidades e demandas. Hoje, o negro não participa dessa disputa. Quem decide por ele são outros.