O ex-prefeito do Rio de Janeiro César Maia faria muito melhor. No final da semana retrasada, o governo argentino anunciou a decisão de barrar todo o produto importado que ameaçasse a indústria local, passando por cima do Mercosul. A reação brasileira foi vários tons acima do que a Argentina esperava, e o presidente Carlos Menem foi obrigado a mudar a coreografia do tango. Improvisou dois pasitos para trás e, na noite de quinta-feira 29, em um encontro marcado às pressas com o presidente Fernando Henrique Cardoso, acertou que a restrição argentina só valerá para mercadorias produzidas por países de fora do Mercosul. O factóide durou seis dias e o presidente Menem foi obrigado a recuar mais rápido do que avançou. Serviu apenas para criar mais atrito numa relação desgastada desde janeiro, quando a desvalorização do real encolheu o superávit comercial argentino.

Quando chegou ao Palácio da Alvorada, Menem cumprimentou Fernando Henrique com um "No pasa nada", que pode ser traduzido pelo nosso coloquial "Está tudo bem". Era verdade. O recuo estava alinhavado desde a véspera, quando o secretário-geral da Casa Rosada e braço direito de Menem, Alberto Kohan, telefonou para o chanceler brasileiro, Luiz Felipe Lampreia. A caminho de Nova Orleans, a bordo do Tango Uno, o avião presidencial de Menem, Kohan acertou com Lampreia que na volta dos Estados Unidos o presidente argentino faria uma escala em Brasília para anunciar a revogação das restrições. Em troca, Menem conseguiu duas reuniões extraordinárias do Mercosul na próxima semana.

Menem recuou rapidamente das medidas protecionistas porque o governo brasileiro, desta vez, resolveu reagir à altura às tradicionais milongas dos nossos "hermanos" do Mercosul. O direito de impor indiscriminadamente barreiras à entrada de produtos brasileiros, sem nenhuma consulta prévia, como a Argentina queria, representava uma sanção que nem os Estados Unidos, maior potência comercial do mundo, adotam para resolver seus contenciosos. Além disso, os argentinos recorreram a uma resolução jurássica da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) para fundamentar a medida. Na prática, queriam rasgar o tratado de criação do Mercosul. Abandonando o habitual estilo comedido dos diplomatas, o ministro Lampreia classificou a decisão portenha como "um verdadeiro AI-5". O chanceler desaconselhou ainda a visita que Menem faria ao Brasil neste mês para marcar a sua despedida da Casa Rosada, porque "não havia clima para festa".

Por trás da surpreendente reação do governo brasileiro, havia a marca do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Clóvis Carvalho, que se tornou o xerifão da área de comércio exterior na última reforma ministerial. Conhecido pelo seu estilo hardcore, Clóvis soltou, no mesmo dia da decisão argentina, uma nota oficial em que bateu duro no muro protecionista argentino. Para não perder mais espaço para Clóvis, os diplomatas trataram de acompanhar o tom. "Para um diplomata, o Lampreia agiu com a sutileza de um elefante. Mas ele estava certo. A Argentina exagerou", chegou a elogiar o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga. No Planalto, quem ganhou pontos mesmo foi o ministro do Desenvolvimento, estrela em ascensão na área econômica.

Os argentinos apelaram porque estão com cada vez mais dificuldades para resolver os desequilíbrios das contas externas e defender o regime de câmbio fixo, o alicerce de sustentação da Argentina desde 1991. O país vem fazendo um enorme esforço para captar dólares no Exterior. Em comparação ao primeiro semestre de 1998, o superávit que os argentinos acumulam nas relações comerciais com o Brasil caiu de US$ 540 milhões para US$ 300 milhões. A desvalorização do real associada à dependência argentina do comércio com o Brasil agravou o conflito entre as duas políticas cambiais. Desde janeiro, sempre que a cotação da moeda brasileira flutua, as autoridades econômicas argentinas ficam com um frio na espinha e o Mercosul sofre abalos.

 

Recusa da Otan O Mercosul é uma das poucas válvulas de escape que sobram para o presidente Carlos Menem, que amarga um final de governo melancólico. Com a economia argentina em recessão, Menem faz o que pode para dar resposta às pressões dos empresários e sindicatos locais. Na quinta-feira 29, a cidade de Buenos Aires foi tomada por uma passeata de fabricantes e operários do setor de calçados que reivindicavam barreiras para frear as exportações brasileiras. A menos de três meses das eleições presidenciais, essas manifestações representam um estímulo a mais para Menem produzir factóides como o da última semana. Não deu certo. O estilo fogueteiro também fracassou na tentativa de tornar a Argentina um dos integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). O pedido dos argentinos foi rejeitado na quarta-feira 28, apesar do alinhamento automático da Argentina à política externa americana. Justificativa para a recusa: o Atlântico que banha a Argentina é o do Sul.