José Bové, o camponês francês símbolo da luta contra a globalização, se vangloria dos gols que marcou contra as empresas multinacionais

Por detrás de seu bigodão louro, farto e comprido há um homem polêmico, teimoso e carismático. Produtor de leite de ovelhas – matéria-prima do famoso queijo roquefort –, o francês José Bové, 47 anos, foi eleito pela revista Business Week como uma das 50 personalidades européias mais importantes do momento. Comparado ao herói de quadrinhos Asterix, o gaulês que sempre vence o Império Romano, o porta-voz da Confederação dos Camponeses passou a ser um ídolo da luta contra a hegemonia do “Império Americano” e os males da globalização. Sua fama correu mundo a partir do ano passado, quando comandou uma operação contra a loja da cadeia McDonald’s, na cidadezinha de Millau, no Sul da França. Preso, Bové comoveu o país ao preferir ficar trancafiado por 19 dias do que pagar fiança. Resultado: 81% dos franceses o apoiaram, segundo a revista Figaro Magazine.

Entre uma baforada e outra de seu inseparável cachimbo, Bové explica que não prega vandalismo, mas a resistência. Famoso como camponês, tem sólida formação cultural (estudou Filosofia em Bordeaux). Tido como antiamericano, estudou nos EUA e fala fluentemente inglês. Em 1973, liderou uma ocupação de terras para resistir à expansão de um campo militar na sua região. Em 1995 foi preso por protestar contra a retomada dos testes nucleares franceses no Taiti. Há dois anos, ajudou a destruir sementes geneticamente modificadas num silo da Novartis, a mesma multinacional que, na semana passada, anunciou a decisão de eliminar os transgênicos dos alimentos vendidos no varejo. A pesquisa revelou que as mães não querem transgênicos nos alimentos infantis. Será o efeito Bové?

Autor do livro O mundo não é uma mercadoria, que já vendeu 80 mil exemplares, Bové defende a agricultura familiar, elogia o MST e critica a morosidade do governo Fernando Henrique Cardoso na desapropriação de terras. Seu último ato de resistência aconteceu no mês passado, na Colômbia, onde, representando a entidade internacional Via Campesina, foi barrado pelo exército ao tentar entrar nas terras dos índios U’wa (no norte do país), ocupadas pela multinacional americana Occidental Petroleum. Em Bogotá, Bové deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – Por que o McDonald’s foi escolhido como alvo da Confederação Camponesa?
José Bové

Desmontamos o McDonald’s – e eu insisto na palavra desmontar e não destruir –, no dia 12 de agosto de 1999, porque era preciso fazer algum tipo de ação para chamar a atenção da opinião pública com relação aos prejuízos que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estava provocando em nossa agricultura e em nossa economia. A OMC condenou a União Européia por se negar a importar dos Estados Unidos carne de vaca com hormônio. Assim: permitiu aos Estados Unidos taxar em 100% produtos de origem francesa, entre os quais estão o queijo roquefort. Apelamos em todos os níveis contra essa decisão na França e na Europa. Todos disseram que não havia nenhum recurso jurídico capaz de reverter essa situação. Isto é, era uma decisão irreversível. Por isso, decidimos levar ao conhecimento da opinião pública européia que a OMC e os Estados Unidos nos estavam obrigando a comer o que eles decidem e não o que recomendam os governos de nossos países. Escolhemos o McDonald’s como alvo por casualidade. Naquele momento, estavam construindo um McDonald’s em Millau, que é o centro de produção de roquefort. O McDonald’s é o símbolo da uniformização da comida e da cultura americana no mundo. Além disso, para se produzir os hambúrgueres do McDonald’s é necessário um tipo de agricultura industrial que, na minha opinião, é pernicioso porque acaba expulsando os camponeses das terras, um processo que acontece em todos os países do mundo.
 

ISTOÉ – Por que o movimento de contestação ao neoliberalismo está recrudescendo, como se viu nos protestos ocorridos em Seattle, no ano passado, durante a reunião da OMC, e em Washington, neste ano, onde ocorreu a reunião do FMI e do Banco Mundial?
José Bové

Hoje a sociedade está se conscientizando com relação às ações perversas dos grandes grupos econômicos, das multinacionais. Com o poder que esses grupos econômicos ganharam, os países hoje não podem agir de forma soberana. Quem decide a política que os países devem seguir são organismos como a OMC e o FMI, mas as pessoas estão querendo reeditar os seus direitos políticos e começam a exigir que suas opiniões sejam levadas em conta pelos governos. As leis de mercado não superam as leis básicas dos compromissos sociais. Não será a lei do mercado que vai superar a lei do homem.

ISTOÉ – Esses protestos contra a atual ordem mundial estão acontecendo nos países do Primeiro Mundo. O sr. acredita que esse movimento de contestação possa vir a atingir os países em desenvolvimento ou os subdesenvolvidos?
José Bové

É verdade que as grandes mobilizações foram nos países desenvolvidos, mas já houve em Bangcoc, na Tailândia, uma mobilização muito importante contra a globalização. Esse tipo de ação não pode ser imposto de fora. É a partir dos movimentos sociais de cada país, como o MST no Brasil, por exemplo, que se começa a conscientizar a opinião pública, que aí então passa a protestar. Mas é importante também organizar ações internacionais, para tentar mudar as regras da OMC, que têm que ser democratizadas. Os cidadãos devem ter controle sobre as decisões da OMC.

ISTOÉ – O que pode haver em comum nas reivindicações dos camponeses dos países desenvolvidos, como a França, e as de países em desenvolvimento, como o Brasil?
José Bové

O ponto fundamental para todos é a necessidade de os países terem a sua soberania alimentar. Por exemplo, nós somos contra o fato de que os porcos da agroindústria européia sejam alimentados pela soja plantada em imensos hectares de terra no Brasil. Nos parece mais sensato que esse potencial produtivo seja aproveitado internamente no próprio País e não utilizado para a produção industrial de porcos na Europa. Outro ponto em comum é a gestão da terra pelos próprios camponeses. É preciso limitar a extensão das propriedades rurais e expropriar os latifúndios para que todos tenham acesso à terra. É a forma de cessar o movimento migratório dos camponeses até as cidades, um fator essencial de desequilíbrio da sociedade, que provoca mais violência e pobreza.

ISTOÉ – O sr. já esteve no Brasil em 1998, quando conheceu o Movimento dos Sem-terra, e teve contato com a realidade do nosso país, que inclui, por exemplo, o problema da concentração de terras. Como o sr. avalia a atuação do governo Fernando Henrique Cardoso em relação à reforma agrária?
José Bové

Me parece que o governo brasileiro não está atuando muito e não trata do problema com a profundidade que é necessária. Os hectares de terras desapropriadas para fins de reforma agrária são muito poucos em relação à extensão do problema da terra no Brasil. A continuar nesse ritmo, o País vai precisar de mais dois séculos para resolver a questão agrária.

ISTOÉ – O que o sr. acha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que além de lutar pela terra passou a encampar uma outra bandeira, o combate aos transgênicos?
José Bové

O que me agrada no MST é que ele não espera sentado por hipotéticas mudanças que o governo possa fazer. O movimento toma as iniciativas e exige as mudanças. É um autêntico movimento popular. Tenho muita simpatia pelo MST.

ISTOÉ – O MST é criticado pelo governo e por parte da opinião pública por promover ocupações de prédios públicos e de terras, como uma forma de fazer reivindicações ao governo. O que o sr. acha dessa tática do MST?
José Bové

Quando se vê a concentração de terras no Brasil, o recrudescimento da pobreza no País, onde muita gente vive abaixo da linha da pobreza e o fato de o governo brasileiro não ter nenhuma vontade política para fazer as coisas, não há outra solução. Então, as ocupações de prédios públicos e de terras se convertem numa forma legítima de atuação.

ISTOÉ – Mas no mundo de hoje, globalizado, há espaço para a pequena agricultura, defendida pela Confederação Camponesa e pelo próprio MST?
José Bové

O debate é entre dois tipos de agricultura: a industrial e a pequena agricultura familiar. O sistema da agricultura industrial cria uma sociedade com gente cada vez mais rica de um lado e gente cada vez mais pobre de outro. Não lutamos apenas para resolver a questão da agricultura, mas para tentar criar um tipo de sociedade diferente, sem a agricultura do tipo industrial, que é uma catástrofe do ponto de vista econômico, social e ambiental. Hoje, os produtores rurais não estão podendo decidir mais a forma de gerir a terra, nem escolher livremente as técnicas que queiram utilizar. No entanto, uma verdadeira revolução, que visa a reverter essa tendência, vem acontecendo nos últimos anos. Os integrantes da Confederação Camponesa têm lutado por outra forma de agricultura, que beneficie a todos, e estão conseguindo muitas vitórias.

ISTOÉ – Por que o sr. decidiu lutar contra os alimentos transgênicos?
José Bové

Os transgênicos também são um símbolo de um sistema de agricultura e um tipo de sociedade que me recuso a aceitar. Os organismos geneticamente modificados são produtos puramente tecnológicos.

 

ISTOÉ – O seu movimento de resistência tem alguma característica ideológica, é anticapitalista, é socialista? O sr. tem algum sentimento antiamericano?
José Bové

O movimento do qual eu participo não está vinculado ideologicamente a nada. Nossas ações não são dirigidas especialmente contra os Estados Unidos, mas contra as multinacionais. Entre elas, as que produzem organismos geneticamente modificados, os transgênicos. São empresas americanas, mas também européias. Para nós, elas são todas iguais. Não importa a sua origem. A forma como a agricultura geneticamente modificada tem sido imposta aos países europeus não nos deixou outra alternativa senão reagir. Não há debates com os produtores rurais e consumidores sobre os organismos geneticamente modificados e os seus malefícios. As decisões são tomadas pela OMC, que dita as suas próprias leis. A lógica econômica que atinge os camponeses também afeta os operários da mesma forma. É preciso unir todas as categorias nessa frente de resistência ao neoliberalismo e à globalização.

ISTOÉ – Então como o sr. se define ideologicamente?
José Bové

Antes de tudo sou um sindicalista. A Confederação Camponesa é uma entidade sindical. Eu travo uma batalha de um ponto de vista social. Temos de mudar a sociedade partindo das preocupações das pessoas, e não guiando-nos por dogmas políticos. Lutamos contra o neoliberalismo porque esse sistema prejudica a humanidade. Com a queda do muro de Berlim, nos demos conta de que não há um tipo pré-determinado de sociedade que substitua outra. Não há um modelo que possa ser uma referência para ser aplicado à sociedade. É preciso que os próprios movimentos sociais, a partir da realidade da população de cada país, construam sistemas políticos novos e humanitários.
 

ISTOÉ – A sua luta não tem uma característica quixotesca?
José Bové

Nos últimos anos marcamos muitos gols contra as multinacionais. A resistência está sendo muito mais forte do que elas esperavam e esse é um fator de esperança. Temos tido muito sucesso na luta contra os transgênicos, por exemplo. Hoje a maioria dos consumidores franceses se recusa a comer alimentos que contenham organismos geneticamente modificados. A coisa chegou a tal ponto que a rede de supermercados Carrefour garantiu aos consumidores franceses que não compra produtos transgênicos. Em 1998, quando estive no Brasil, soube que o Rio Grande do Sul proíbe totalmente a produção dos transgênicos. Outra vitória importante que tivemos foi em Seattle. Pela primeira vez o movimento social fez com que as negociações da OMC fracassassem. Foi um golpe certeiro contra as potências mundiais. A partir daí, os movimentos, inclusive a nossa Confederação Camponesa, decidiram que em todas as reuniões desses organismos internacionais haverá a presença maciça de manifestantes. Não vamos descansar. Vamos resistir. Na França estamos nos opondo à lógica neoliberal. No último dia 30 de junho, quando houve o meu julgamento e de outros companheiros, cerca de 50 mil manifestantes (a polícia calculou em 30 mil) se reuniram em Millau, que tem 20 mil habitantes. Mais de 100 jornalistas do mundo todo cobriram o julgamento, cujo resultado sairá no dia 13 de setembro. É muito importante incrementar mais ainda a rede de informações mundial para fortalecer esse movimento de protesto e de resistência, que certamente vai continuar crescendo.

ISTOÉ – O que o sr. achou de ser classificado como uma das 50 personalidades da Europa justamente por uma publicação como a revista americana Business Week ?
José Bové

O interessante é que, pela primeira vez, um ator do movimento social entra nesse tipo de classificação. Não foi um diretor de banco, de multinacional, nem um político, mas um camponês, que é o que eu sou.