23/08/2000 - 10:00
A expressão “movimento de favelania” foi pronunciada pela primeira vez pelo traficante carioca Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, preso em fevereiro. O traficante ficou famoso após a divulgação da sua relação com o cineasta João Salles, autor de Notícias de uma guerra particular, filme que mostra o dia-a-dia do tráfico no Morro Dona Marta. A proximidade de João, um dos herdeiros do Unibanco, com VP pôs mais fermento na crise que implodiu a cúpula da polícia carioca e culminou na demissão do coordenador de Segurança Luís Eduardo Soares. Por trás da idéia “favelania” estava o ex-estudante de Teologia André Fernandes, 29 anos, que desde 1991 percorre favelas do Rio. Ele disse a ISTOÉ que o seu objetivo é conscientizar as comunidades a lutar por seus direitos. André é um dos organizadores do ato que acontecerá terça-feira 29, na Candelária. Favelados, sem-teto, MST e estudantes marcarão os sete anos da chacina de Vigário Geral e protestarão contra a violência policial. Essas forças se juntaram para formar a Frente de Luta Popular (FLP), outra idéia de André. A mobilização assustou a Secretaria de Segurança fluminense, que começou a investigar a ligação dos líderes de favelas com os traficantes. O governo divulgou uma gravação em que André conversa com a mãe de Marcinho VP e também a trata de “mãe”. O secretário Josias Quintal reclama das bravatas de outro líder: Antônio Carlos Gabriel, o Rumba, do Jacarezinho. Ele ameaçou juntar traficantes e favelados para fazer reivindicações. André é filho de uma advogada e de um médico. Quanto à sua obstinação, assegura: “Vou até onde permitirem minhas forças, até à morte. Digo isso porque posso estar numa favela, um policial me dar um tiro e responsabilizar o tráfico. Mas não tenho medo da morte.”
ISTOÉ – Como você se define?
André Fernandes – Sou um missionário, luto por ideologia. Sou favelado por opção. O que define essa luta é a frase de Che Guevara: “A maior ambição revolucionária é ver o povo liberto da sua alienação.” Quero levar consciência ao povo para que se torne autor da sua própria cidadania. Isso é a favelania.
ISTOÉ – Quais as frentes de atuação?
André – Favelas. Em setembro começam os cursos de formação política. Falaremos sobre Manifesto Comunista, conjuntura social, MST, Che e Malcom X.
ISTOÉ – É possível ser líder de uma favela sem ter contato com o tráfico?
André – As lideranças conhecem o tráfico e vice-e-versa. Nosso movimento não preocupa. A proposta deles é mais tentadora. Enquanto um garoto ganha R$ 151 mensais para trabalhar dez horas por dia, o que vende drogas recebe R$ 300 por semana. Mesmo que eu tire dois ou três, centenas vão entrar no tráfico.
ISTOÉ – O movimento “favelania” é revolucionário?
André – Sim, mas ninguém deve ter medo. Não vamos pegar em armas. Proponho uma revolução de mentes. Há o medo da violência, mas não haverá isso. Organizei um passeio dos sem-teto e o das favelas ao shopping Rio-Sul. Entramos em joalherias e nada aconteceu.
ISTOÉ – Rumba, do Jacarezinho, disse que os traficantes emprestariam armas para uma revolução socialista…
André – Isso foi uma coisa dele. Não foi tratado nem pela “favelania” nem pela FLP. Conversei com ele e disse que não era por aí. Rumba concordou.
ISTOÉ – Há líderes que colaboram com o tráfico. Como você lida com isso?
André – Temos de ter cuidado, a gente vive no fio da navalha. Isso é usado pelo governo para nos desqualificar. Mas é difícil estar numa favela e dizer para o cara ‘eu não quero falar com você’, quando tem um monte de fuzis do lado dele.
ISTOÉ – Como garantir que atos como o do dia 29 não sirvam aos traficantes?
André – No dia em que o movimento tiver de abaixar a cabeça para traficante, eu paro.
ISTOÉ – Marcinho VP falou em “movimento revolucionário por favelania”. Qual é sua influência sobre ele?
André – O Márcio eu conheço desde que eu fui para o morro. Várias vezes veio conversar comigo e falei que o caminho era outro, não o tráfico. Ele sempre dizia que se não estivesse devendo tantos anos de cadeia gostaria de fazer o que eu faço. Dei vários livros a ele para mostrar que tinha de sair do tráfico.
ISTOÉ – Proximidade com o tráfico não é perigoso?
André – O movimento do qual participo não é o da “boca” (de fumo) e sim político-social. Se quiserem fazer comigo o que fizeram com tantos outros que lutaram por um País melhor – botar na cadeia, dizer que é bandido – que façam. Mas não saio dessa luta por nada.
ISTOÉ – Você critica a opressão do tráfico nos morros…
André – O tráfico é composto por gente que está à margem da sociedade. Como vou fazer com que tenham uma outra postura? Já questionei coisas erradas como crianças vivendo o mundo das drogas.
ISTOÉ – A principal reclamação das favelas é a violência policial?
André – É. O que aconteceu com Gabriel (6 anos, morador do morro de São Carlos, morto, segundo moradores, por policiais) foi absurdo. O governo pegou armas oficiais dos que participaram da operação, mas a balística não comprovou nada. Todos eles usam uma pistola ilegal na cintura, normalmente a PT 380. Foi uma dessas armas que matou o Gabriel. O comando da polícia sabe disso.
ISTOÉ – Você perdeu a eleição para dirigir a associação do Dona Marta. É legítimo falar pela comunidade?
André – A comunidade acha que a associação está desgastada. Numa favela com dez mil habitantes, houve 600 votos ao todo. Além disso, o outro candidato ganhou por ter apoio da Igreja Universal, que é muito forte no morro.