Na ponta oeste da área de Gay Head, na Ilha de Martha’s Vineyard, existe uma pequena praia particular. Pertenceu à ex-primeira-dama americana Jacqueline Kennedy Onassis e foi deixada como herança para seu casal de filhos. Na terça-feira 20 ISTOÉ confirmou com exclusividade que foi precisamente para este ponto que a maré fez chegar um significativo pedaço de papel. Era o título que dava a John Fitzgerald Kennedy Jr. a propriedade do avião Piper Saratoga II HP. Naquela altura, já não havia mais dúvidas de que o aparelho e seu dono, de 38 anos, estavam no fundo do mar. Carregaram com eles a esposa Carolyn Bessette Kennedy, 33 anos, e sua irmã Lauren Bessette, 35 anos. Também foi a seis quilômetros defronte daquela mesma praia reclusa que as cinzas dos três corpos foram despejadas no mar na quinta-feira 22. Um ritual executado por Caroline Kennedy e o senador Edward Kennedy, a irmã e tio de John, a bordo do destróier USS Briscoe. Procuravam, assim, encerrar com dignidade e longe da imprensa a história de um homem nascido sob o foco das objetivas. John Kennedy Jr. voltava – por determinação própria – às águas da praia que tanto amava e recusava pela última vez a curiosidade histérica do mundo.

Cinco dias de procura desesperada foram gastos desde a sexta-feira 16 às 21h39, quando o avião que levava John Jr., sua esposa e cunhada desapareceu do radar depois de apresentar queda vertiginosa. "Os dados registrados pelo radar da Federal Aviation Agency mostram que o aparelho caiu de 2.200 pés para 1.300 pés em apenas 12 segundos. Trata-se de uma queda de 75 pés por segundo", relatou Robert Pearce, o chefe das investigações. Ou seja, foi como so e pequeno monomotor com capacidade para seis passageiros caisse o equivalente a um prédio de nove andares num único segundo. A aeronave sumiu quando estava a cerca de 30 quilômetros do aeroporto de Martha’s Vineyard, onde faria uma escala para deixar Lauren. O plano de vôo indicava que dali a viagem prosseguiria até a vizinha Hyannis, perto de onde a família Kennedy estaria se reunindo para o casamento de Rory, filha do falecido senador Robert Kennedy. Este roteiro nunca chegou a ser cumprido.

 

Inexperiência John era um piloto inexperiente, em quem nem a apaixonanda esposa confiava quando se tratava de voar. Sua capacidade sequer lhe permitia ler os instrumentos adequadamente. "Acho que ele nem sabia como acionar o piloto automático do aparelho, que é muito bom e útil em caso de desorientação", disse a ISTOÉ Munir Hussein, ex-dono do Piper Saratoga e que o vendeu a John. Seja como for, a viagem foi feita em noite de pouca lua, sobre o oceano e com névoa cegante provocada pela intensa umidade de verão. As últimas manobras registradas pelo radar da FAA indicam provável desorientação do piloto, com uma guinada abrupta para a direita, perda de altitude e a queda praticamente em parafuso.

Os dados do radar só começariam a chegar às mãos dos investigadores no domingo 18. A Guarda Costeira fora avisada que o avião de John estava desaparecido às 2h30 do sábado. A Força Aérea primeiro tentou determinar se não tinha havido desvio para outro aeroporto. Com o passar das horas, as certezas do acidente ficaram maiores. Numa corrida contra o tempo, várias agências governamentais foram acionadas para a busca. Havia naqueles momentos esperança de que fossem encontrados sobreviventes. O almirante Richard Larrabee, encarregado das ações da Guarda Costeira, chegou a declarar numa entrevista coletiva que sua missão era a salvar Lauren, Carolyn e John. Isso a despeito de indícios tenebrosos, como o surgimento em Martha’s Vineyard de uma valise identificada pelo cartão de Lauren Bessette, a alta executiva de uma grande firma de investimentos nova-iorquina.

Ainda assim, era muito difícil apontar precisamente onde o acidente acontecera. A área de busca compreendia uma faixa do Atlântico com nove mil milhas de extensão. "É pior do que tentar achar um grão de areia numa piscina olímpica", disse a ISTOÉ o almirante Larrabee. A comparação não era tão boa, como se veria na segunda-feira 19: uma piscina não costuma ter ondas tão fortes. As operações tiveram que ser suspensas porque – por incrível que pareça – os mergulhadores foram acometidos por fortes enjôos marítimos. Na terça-feira 20 o navio US Grasp, munido de um sonar poderoso, varreu com ondas sonoras o fundo do mar, numa área com desenho semelhante a uma gigantesca cartola, com base de cerca de 20 quilômetros, e 17 de extensão. Seria dentro destes limites, num ponto a 18 quilômetros de Grey Head, que um robô submarino chamado ROV (remotely operated vehicle) proporcionaria os primeiros contatos visuais com os destroços da aereonave. Eram 23h30 e a escuridão tornava mais perigosa qualquer exploração por mergulhadores. Os corpos de Lauren, Carolyn e John só seriam descobertos na manhã de quarta-feira 21.

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Ainda no sábado os primeiros grupos de repórteres, que sempre estiveram como matilha na trilha de John Jr., tinham invadido Hyannis, uma antiga aldeia de pescadores, transformada em ponto chique de veraneio – inclusive de muitos brasileiros que moram em Miami – pela presença dos Kennedys. Nos dias seguintes, esta charmosa cidadezinha de Cape Cod seria transformada num arremedo da "Montanha dos Sete Abutres", o cenário do antigo filme do diretor Billy Wilder. Na história – um clássico sobre os abusos da imprensa –, o repórter interpretado por Kirk Douglas faz tudo para retardar o salvamento de um homem preso numa mina. Promove-se assim um clima de circo em torno de uma tragédia. Tudo para manter gordas as vendas de jornais. O drama nas marés da Nova Inglaterra também atraiu uma revoada de abutres. Nos cálculos da Câmara de Comércio de Hyannis, 1.200 jornalistas pousaram nas encostas daquela cidadezinha e de Martha’s Vineyard. Quase a mesma quantia destacada para cobrir a Copa do Mundo de Futebol de 1994 nos EUA. No hotel Internacional Inn nada menos do que 15 apartamentos tinham sido ocupados por repórteres japoneses. "É algo horrível de se dizer, mas a verdade é que esta tragédia foi ótima para os negócios" declarou Michael Ritter, gerente do hotel.

 

Circo da mídia A venerada casa dos Kennedy em Hyannis Port parecia uma caravana pioneira cercada de índios, na famosa imagem do cinema americano. Os caminhões, com antenas de micro-ondas para transmissão de imagens, faziam o cerco e ocupavam as ruazinhas estreitas da vizinhança. Os jardins manicurados das casas eram pisoteados como num poema de Vladimir Maiakovsky (1893-1930). Com o circo armado, não faltou espírito empreendedor local: um próspero comércio de sanduíches e refrescos foi estabelecido. Só não ganhou dinheiro quem não quis. Um milionário cuja mansão está ancorada nos exclusivos costados de Gay Head foi consultado por dois jornalistas brasileiros com ofertas para o aluguel de seu telefone por algumas horas. Enojado, o homem deu resposta apropriadamente fulminante: "Meu filho, eu paguei US$ 1.672.000,00 por esta casa. Você acha que estou precisando alugar meu telefone?" Os mesmos brazucas tentaram alugar a lancha de outro tycoon, mas foram repelidos por garantias de que aquela era uma nave para uso recreativo.

Ali em Hyannis Port começava a se confirmar um dos pesadelos maiores de Jonh Kennedy Jr.: o de ser transformado na versão masculina da princesa Diana. O enredo composto pela cobertura exigia também um desfecho. Apesar de que em Washington alguns políticos perguntavam qual era o propósito de manter a busca exagerada e muito cara em se tratando de simples cidadãos. Respondendo a esta questão, o presidente Bill Clinton disse que o almirante Larrabee acreditava que havia boas chances de os corpos serem encontrados. Isso teria ajudado na decisão presidencial de estender as buscas. "Por causa do papel da família Kennedy na vida nacional, eu achei que a continuidade das operações seria apropriada", justificou Clinton, assumindo a responsabilidade. Naquele exato momento, ele já sabia que os três corpos tinham sido encontrados.

 

Corpos juntos Na quarta-feira, os mergulhadores desceram a 116 pés de profundidade, onde estavam os destroços do avião. Semanas antes foram jogadas nas águas da região várias iscas para atrair tubarões azuis. Eles fazem parte de um festival anual de pesca e são um negócio lucrativo para os barcos de passeio turísticos. "Este tipo de tubarão não costuma atacar seres humanos", garantiu a ISTOÉ John E. Mitchell, do Assessing Departament de Barnstable. "Mas se o animal encontra cadáveres, não há dúvidas de que vai atacar", disse. Os tubarões azuis podem ser responsáveis por danos apresentados nos corpos das vitímas. Outra suspeita é uma tartaruga gigantesca encontrada pelo mergulhador Gale na área do desastre.

O almirante Larrabee diria na quarta-feira 21 que um dos corpos estava debaixo da fuselagem. Esta afirmação contradiz o relato dos mergulhadores. O fotográfo de ISTOÉ, Alcir Silva, entrevistou alguns dos homens que ajudaram a recuperar os corpos. O sargento Hartley era um destes mergulhadores e garantiu que "os corpos estavam juntinhos", todos ainda presos pelos cintos de segurança nas poltronas. Caberia ao senador Ted Kennedy a horrível tarefa de identificar as vítimas. Ele subiu a bordo do USS Briscoe, juntamente com dois de seus filhos que carregavam valises contendo roupas para vestir os mortos. Quando John Jr. finalmente foi içado ao convés, seu tio o esperava e havia providenciado para que os fotógrafos não registrassem também esta cena macabra.

John F. Kennedy Jr. herdou realmente uma maldição: foi condenado a viver sempre debaixo da atenção do público. Afinal, ele foi o único bebê a nascer enquanto seus pais ocupavam a Casa Branca. Desde a saída da sala de parto, passando pelos primeiros passos dados nos corredores do poder americano e a famosa incursão debaixo da escrivaninha presidencial, até o dilacerante gesto de continência feito à passagem do cortejo fúnebre de seu pai, o presidente John Kennedy, tudo foi documentado. Para piorar sua condição, John Jr. era terrivelmente fotogênico. Foi necessária toda a legendária classe e habilidade de sua mãe, Jackie, para mantê-lo equilibrado no difícil caminho das pedras na área das relações públicas. Jacqueline Kennedy Onassis conseguiu a proeza de manter os filhos afastados das loucuras cometidas por seus primos – especialmente os filhos de Ethel e Bob. John jamais se envolveu em escândalos e manteve a compostura de um príncipe encantado. Trata-se primeiramente de um assombro, já que sua vida amorosa foi repleta de tentações perigosas e não resistidas. Como explicar que alguém que teve um tórrido affair com Madonna e com a atriz Daryl Hannah não tivesse suas preferências sexuais estampadas em livros e jornais sensacionalistas? O fato é que ele acabou escolhendo o tipo de moça certinha para ser sua esposa. Carolyn Bessette tinha o sangue azul proporcionado pelas velhas fortunas americanas e o charme e o estilo que a transformavam numa espécie de sucessora natural de sua sogra, a ex-primeira-dama.

Por tudo isso os EUA viam naquele homem de elegância impecável seu futuro presidente. Nele se refletia a imagem do reino mítico de Camelot, prometido pelos Kennedys. Nos últimos tempos cresceram as especulações de que John Jr. fosse concorrer para a vaga de senador por Nova York: primeiro passo rumo à Casa Branca. Dizem que ele só não se lançou candidato democrata nas próximas eleições porque a atual primeira-dama, Hillary Clinton, pulou na frente. Por enquanto, permaneceria no cargo de editor da revista George – que durante quatro anos ele estabeleceu no respeitável patamar dos 400 mil exemplares, apesar da descrença inicial de muitos críticos. Assim, deixaria passar o tempo, sabendo que seu futuro em Washington já estaria sendo traçado. Ao invés disso, o legado que lhe coube foi apenas o da tragédia.

A cerimônia de sepultamento marítimo é ritual ancestral grego. Nada poderia ser mais apropriado para um Kennedy. O clã sempre foi apegado aos rituais e sua história de tragédias clama pelo chavão da comparação com a mitologia grega. Até a praia onde está encastelada a mansão familiar em Hyannis Port parece um cenário da Grécia, com anos de sargaço formando um carpete sobre a areia. Lá se estabeleceu, desde 1928 quando a propriedade foi comprada, o Olimpo dos semideuses da maior dinastia americana. Era o epicentro aglutinador dos Kennedy, onde as vitórias foram saboreadas com o mesmo vigor que eles demonstravam ao jogar seu predileto futebol americano à beira-mar. Ali foram firmados pactos políticos – ou nupciais, como o casamento que Rory pretendia celebrar, mas teve de cancelar. É para perto do mar que eles sempre voltam. O presidente John Kennedy, em seu discurso de posse, explicou este rito quando disse que aos homens cabia a volta às águas, pois delas tinham se originado. O filho John Kennedy Jr. honrou as palavras de seu pai.

 


Convite ao desastre

Como um garoto que cresceu numa cultura irlandesa-católica, refleti sobre o limbo como um lugar de escuridão e silêncio, um lugar onde tudo está em suspensão, e você está totalmente, desesperadamente só, esperando pelo dia do julgamento. Mais tarde na minha vida, como um aviador da Marinha, eu descobri que há outro limbo, o limbo real. E é o mesmo lugar para onde John F. Kennedy Jr. partiu neste último final de semana.

Qualquer piloto experiente conhece muito bem este lugar, principalmente os pilotos da Marinha. Você encontra-se nesse lugar à noite, voando sobre o oceano, quando a neblina, ou a baixa visibilidade obscurecem a luz da lua e das estrelas. Pilotos experientes evitam o limbo. Pilotos militares e comerciais, os mais treinados pilotos de todos, não têm permissão para voar nas condições de vôo em que Kennedy Jr. voou. Há muito tempo, os militares responderam a esses perigos proibindo vôos assim, abrindo exceções para operações de extrema necessidade. Não só por razões de segurança, mas também econômicas e de segurança dos equipamentos, pilotos não podem voar com visibilidade ruim sem um plano de vôo. Este tipo de vôo chamado de VFR (Visual Flight Rules) noturno é também evitado por pilotos que são extremamente experientes em instrumentação, assim como por pilotos de grandes aviões comerciais. São apenas os mais desqualificados, voando nos aparelhos menos equipados, que se submetem ao perigo do limbo.

Em baixa altitude – menos que 5 mil pés – sobre o oceano à noite, não há o que sirva para orientar o piloto na direção do horizonte a não ser a lua e as estrelas. O horizonte é onde as estrelas terminam e a escuridão, onde o oceano começa. Sob essas péssimas condições, pilotos experientes usam só os instrumentos, baseando-se no "horizonte artificial" do painel. Eles sabem que não podem se orientar apenas por suas intuições.

Kennedy tinha treinamento e experiência suficientes para saber isso, e ele sabia das dificuldades que iria encontrar se burlasse as regras VFR. Ele havia começado a aprender instrumentação e já havia utilizado o auxílio de instrutores de vôo em condições de mau tempo, ou por conta de sua inexperiência. Sabe-se que ele planejava voar mais cedo, mas, devido ao atraso de sua cunhada, a decolagem também se atrasou. Ele sabia das condições do tempo porque as informações foram passadas a ele. Então por que voou?

Foi imprudente? Foi irresponsável? Talvez, todas essas coisas, mas também foi um vôo comum. Voar em condições de péssima visibilidade é permitido pelas regras da aviação civil dos EUA. Então é hora de frear a insanidade do descuido. As regras VFR devem ser mais rígidas em condições de mau tempo e em vôos sobre o oceano.

Essas regras foram estabelecidas em um tempo em que havia um número muito menor de aparelhos e aviões menos potentes. Kennedy Jr. não deveria ter recebido permissão de decolagem e executar aquele vôo naquelas condições de tempo. Os proprietários de aviões e os pilotos deveriam brigar por essa causa. Todos os pilotos gostariam de ter liberdade de voar para onde e quando quiserem. Eles acreditam que os pilotos são os melhores para julgar o momento de voar. E o tempo vai passando e essa lenda permanece.

 

ROBERT DITCHEY
(ex-piloto naval e um dos fundadores da America West Airlines )



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