Durante visita a uma rádio de Goiânia, Jerry Adriani ouviu uma canção desconhecida numa voz idêntica à sua. Espantado, foi logo perguntando: “Que música é essa que eu gravei?” Desfeito o engano, Adriani ficou sabendo que a canção tinha o título de Será, fazia parte do disco de estréia de uma banda de Brasília chamada Legião Urbana e quem cantava era um tal de Renato Russo. Por algum tempo, muita gente iria confundir as duas vozes. Mas a semelhança extrapolaria a barreira das coincidências. Num certo vôo para Porto Alegre, os dois se encontraram e o vocalista confidenciou ao ídolo dos anos 60 como aconteceu sua decisão de se tornar cantor. Contou ter sonhado com uma luz no céu, que a luz se transformava em Elvis Presley e este em Jerry Adriani, que lhe falou: “Filho, vai em frente.” As duas histórias estão descritas no livro Renato Russo (Relume Dumará, 184 págs., R$ 15), da série Perfis do Rio, do jornalista e crítico musical carioca Arthur Dapieve, que nas páginas internas batizou seu trabalho de O trovador solitário.

Com um recheio de 15 fotos em preto-e-branco, O trovador solitário chega nesta semana às livrarias antecedido de certa ansiedade. Afinal, até sua morte em decorrência da aids, em 11 de outubro de 1996, Renato Russo arrebanhou milhares de fãs que por muito tempo integrariam a chamada “religião urbana”, tal o fanatismo em torno do grupo de rock. Compromisso assumido, Dapieve saiu a campo. Entrevistou a família, amigos e colegas do cantor e supôs ter um bom material à mão. Se a intenção do jornalista era fazer uma cronografia da Legião Urbana, tendo Russo como figura de proa, apenas pincelando dados sobre sua personalidade ariana, ou seja, de caráter forte, de extremos, o resultado contenta. Mas, ao que parece, o intuito era escrever uma biografia daquele que rivalizou com Cazuza não só na intensidade de seus versos, mas na maneira rápida e sempre bombástica de viver. Neste sentido, é um trabalho frustrante. O trovador solitário está longe de ser um livro corajoso. É um testamento de fã contido, que, talvez em benefício de um jornalismo isento, joga o leitor na frigidez dos comuns.

Renato Russo foi uma pessoa atípica, como o próprio Dapieve descreve nos raros momentos em que não se sente acuado por tocar em assuntos pouco convenientes à memória e à família do cantor como a homossexualidade e o prazer que sentia na autodestruição, com passagens por drogas pesadas, entre elas a heroína. Russo também adorava beber. Chegava ao cúmulo de entornar copos enormes do licor Cointreau, em pleno sol do Nordeste. Ao longo do livro adivinha-se duas situações incômodas. Primeiro, a insuficiência de material, o que fez com que o autor se debruçasse capítulos a fio comentando faixa por faixa dos discos da Legião – recurso desnecessário tanto para os fãs conhecedores da obra da banda quanto para os meros curiosos. Segundo, o medo de causar sensacionalismo. Ora, quando se opta por escrever uma biografia, autorizada ou não, quem compra quer saber detalhes da vida pessoal do biografado, curiosidades e fatos picantes. Está provado que é possível trilhar este caminho, sem despencar para o lado marrom dos fatos. Lucinha Araujo, em parceria com Regina Echeverria, moldaram um retrato contundente, belo, supercorajoso de Cazuza no livro Só as mães são felizes. A memória de Renato Russo permanece merecendo um trabalho do mesmo porte.