Para o escritor Kaká Jecupe, a semente do distanciamento entre brancos e índios está na estrutura das sociedades: uma cultua o ter e a outra o ser

Kaká Werá Jecupe é um caso raríssimo de escritor no Brasil. Índio tapuia, ou txucarramãe (guerreiro sem arma), como ele prefere, filho legítimo dos ancestrais habitantes das terras "descobertas" pelos portugueses, resolveu romper o silêncio de cinco séculos e escrever a história vista pela ótica dos que habitavam o Novo Mundo há milhares de anos. O resultado é o belíssimo livro poético-mitológico A terra dos mil povos, publicado pela editora Peirópolis. Nascido em 1964, na aldeia guarani Morro da Saudade, periferia sul de São Paulo, Kaká estudou em escola pública, onde conheceu a história oficial do País, que jamais incluiu as culturas indígenas. Foi o estopim para mergulhar em suas raízes. Passou a peregrinar por aldeias, seguindo a mitológica trilha empreendida pelos guaranis em busca da Terra sem Males. Ouviu dos sábios anciãos a memória viva dos ancestrais. Há quatro anos criou o Instituto Nova Tribo, célula de propagação das culturas indígenas. Com os olhos abertos para os 500 anos de Brasil, trabalha atualmente no projeto Arapoti, um grande encontro tribal para a "pacificação do branco".

ISTOÉ – O Brasil está se preparando para comemorar seus 500 anos. Para os povos indígenas, são anos de descoberta ou de invasão?
Kaká Werá Jecupe

De desencontro. Desencontro que provocou e continua provocando situações gravíssimas. A realidade atual indígena não é fácil. Ainda hoje, em grandes áreas do País, é na base do tiro. Os interesses que provocam essas ações continuam sendo os mesmos: interesses econômicos. Hoje há um elemento a mais que são as indústrias farmacêuticas multinacionais, que estão praticando a biopirataria, roubando todo um conhecimento ancestral que os povos indígenas detêm a respeito de ervas medicinais.

ISTOÉ – E qual é a razão desse desencontro?
Kaká Werá Jecupe

 A semente desse desencontro está numa sociedade que tem na sua estrutura de cultura a questão do ter e encontrou uma cultura aqui voltada para o ser.
 

ISTOÉ – Os europeus chegaram trazendo o progresso, trataram os que estavam aqui como primitivos. Como você pensa essa relação?
Kaká Werá Jecupe

 Para quem fundamenta a sua cultura no ter, a noção de progresso está em ver ao seu redor o acúmulo de bens materiais. A noção de progresso dos indígenas está em desenvolver a sua capacidade criativa, a sua expressão no mundo. É preciso que a civilização olhe para os índios com menos prepotência, até para perceber que ela está em colapso.
 

ISTOÉ – Por que em colapso?
Kaká Werá Jecupe

A civilização não está entrando em colapso por causa da Bolsa de Valores? Tudo isso é blefe. Como é que pode uma economia se basear no blefe? Isso que se chama de progresso chegou a um nível de tamanha cegueira, que não se percebe o quanto ela vive de auto-engano.
 

ISTOÉ – Uma cegueira em relação a valores mais profundos da existência?
Kaká Werá Jecupe

 Para o tupi-guarani a palavra tem espírito. Na sociedade civilizada as pessoas vivem de palavras sem espírito. Não tem verdade uma economia que se funda na oscilação da Bolsa, do dólar. Quem sofre as consequências é aquele que constrói, que planta, que lida com a realidade. Essas noções de progresso têm de ficar claras. Aí haverá a possibilidade de a gente promover um encontro cultural.
 

ISTOÉ – Como poderia ter sido esse encontro?
Kaká Werá Jecupe

Poderia ter havido um desenvolvimento de ambos os povos, sem que isso representasse a quebra da essência cultural dos povos. Um amadurecimento tanto da cultura nativa quanto da cultura que veio para cá. Isso não ocorreu. A cultura ocidental até hoje pratica valores que são de um tempo que já se concluiu. Essa coisa da conquista, de ter de acumular terras e bens. Isso é totalmente retrógrado. Primitivo.
 

ISTOÉ – Você está preparando um encontro de entidades indígenas para os 500 anos do Brasil através do projeto Arapoti. Qual é a idéia desse encontro?
Kaká Werá Jecupe

 A morte do nosso parente pataxó em Brasília, queimado por garotos brancos, me levou a pensar na juventude brasileira. Pensei em fazer um encontro de tribos, trazer as nossas cerimônias e interagir com a juventude, porque ela está precisando, está manifestando a doença da civilização. O grande problema da juventude é que ela perdeu o contato consigo mesma, com os ciclos. Os povos indígenas marcam esses ciclos através de ritos, de um processo de educação fundado nas mitologias. A sociedade não tem isso e a juventude fica sem saber o que ela é.
 

ISTOÉ – Como você vê a questão da integração? Como se resolve isso?
Kaká Werá Jecupe

 Os povos que estão no Xingu, na Amazônia, enquanto estiverem numa situação ecologicamente equilibrada serão os nossos professores de ancestralidade. Devem ficar lá, se quiserem. Os que devem ser educados são os agressores dessa cultura, os fazendeiros, os garimpeiros, as mineradoras. É preciso sensibilizá-los para que percebam a besteira que estão fazendo. Os povos indígenas são patrimônios vivos da humanidade.
 

ISTOÉ – Nesses 500 anos, com o desaparecimento de centenas de etnias, qual foi o maior patrimônio que o Brasil perdeu?
Kaká Werá Jecupe

O patrimônio da sabedoria. O brasileiro não sabe da sua própria cultura. Tem todo um modelo insistindo no imaginário que vê o índio como um pobre coitado. Esses 500 anos oferecem a possibilidade de rever as suas raízes, ter a percepção desse patrimônio.
 

ISTOÉ – Nesses 500 anos, com o desaparecimento de centenas de etnias, qual foi o maior patrimônio que o Brasil perdeu?
Kaká Werá Jecupe

O patrimônio da sabedoria. O brasileiro não sabe da sua própria cultura. Tem todo um modelo insistindo no imaginário que vê o índio como um pobre coitado. Esses 500 anos oferecem a possibilidade de rever as suas raízes, ter a percepção desse patrimônio.
 

ISTOÉ – De perceber a nossa própria riqueza?
Kaká Werá Jecupe

 Claro. Com essa riqueza de flora, de fauna, de povo, você acha que o Brasil é um país pobre? É mais um blefe que eu não sei por que a sociedade acredita. Eu ando pelas serras, florestas, cerrados. Não tem ninguém mais rico do que a gente. Também já andei fora do Brasil. Falam de Nova York. Nunca vi lugar mais fúnebre! Aquela coisa sempre escura, saindo fumaça debaixo do chão. Se aquilo ali for modelo de civilização, realmente a gente está muito longe. O homem não é filho daquela fumaça fúnebre que fica saindo pelos bueiros. Ele é filho da terra. A essência humana nasceu nas águas, na montanha, na árvore, nos animais. Não está na megalópole.
 

ISTOÉ – Há um trecho em seu livro, A terra dos mil povos, em que você escreve: “De acordo com a nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa. Uma palavra na boca é como uma flecha no arco.” O que significa exatamente a palavra para o índio?
Kaká Werá Jecupe

Para o tupi-guarani, ser e linguagem são uma coisa só. A palavra tupuy designa ser. A própria palavra tupi significa som em pé. Nosso povo enxerga o ser como um som, um tom de uma grande música cósmica, regida por um grande espírito criador, o qual chamamos de Namandu-ru-etê, ou Tupã, que significa o som que se expande. Um dos nomes de alma é neeng, que também significa fala. Um pajé é aquele que emite neeng-porã, aquele que emite belas palavras. Não no sentido de retórica. O pajé é aquele que fala com o coração. Porque fala e alma são uma coisa só. É por isso que os guaranis-cayowas, por desilusão dessas relações com os brancos, preferem recolher a sua palavra-alma. Se matam enforcados (como vem acontecendo há cerca de dez anos, em Dourados, em Mato Grosso do Sul) porque a garganta é a morada do ser. Por aí você pode ver que a relação da linguagem com a cultura é muito profunda para o tupi-guarani.
 

ISTOÉ – Você diz também que o nome de uma pessoa é muito importante. Como se nomeia uma criança dentro da sua tradição? K
Kaká Werá Jecupe

 Na tradição tupi-guarani existem sete nomes somente. Sete nomes universais. Todos os demais são reivindicações humanas. Esses sete nomes originais são nossos ancestrais. O humano herdou desses sete pais o dom de nomear, de continuar a criação. Esses seres primeiros, que os tupis-guaranis chamam de Nanderu, são divindades. São elas que sustentam o movimento do mundo. Toda a nossa descendência vem desses nomes. Quando um ser é batizado espiritualmente, ele recebe o que seria o equivalente ao sobrenome. O sobrenome norteia a sua linhagem, a sua ancestralidade.
 

ISTOÉ – Quais são as divindades?
Kaká Werá Jecupe

Werá, Karaí, Jacairá, Tupã, que são as quatro que sustentam o mundo. Há também Namandu, Jasuká e Jeguaká, que são as divindades que sustentam o espírito.

ISTOÉ – Cada pessoa do povo tupi-guarani pertence a uma dessas linhagens?
Kaká Werá Jecupe

Sim. É muito comum ver entre os guaranis pessoas chamadas Werá Popyguá, Werá Mirin ou então Tupã Jeguaká, Tupã Poty, Karaí Poty. Sempre aparecerão esses nomes.
 

ISTOÉ – Em seu livro a gente percebe também o uso de expressões substantivadas, como homem-lua, mulher-sol, tribos-pássaros. Por que isso?
Kaká Werá Jecupe

 Dentro dessas linhagens primordiais, homem-lua está ligado a um cruzamento de heranças, de uma qualidade do homem com uma qualidade lunar. São cruzamentos que qualificam a estrutura de um ser.
 

ISTOÉ – Nesse caso específico de homem-lua é interessante a inversão, porque o homem está normalmente associado ao sol. E a mulher à lua.
Kaká Werá Jecupe

 A cultura tapuia acha que o ideal da humanidade são o homem-lua e a mulher-sol. Seres perfeitos, que atingiram essa qualidade na Terra.
 

ISTOÉ – Levando-se em conta que a palavra é tão importante para os tupis-guaranis, o que significa o silêncio?
Kaká Werá Jecupe

 O silêncio está em tudo. O tupi, esse som em pé, se manifesta em três corpos: o físico, um corpo que a gente chama de corpo de som, e um outro que é o corpo de luz. Esse corpo de luz é ligado a duas qualidades de energia, a polaridade feminina e masculina. Os cantos são entoados para afinar, harmonizar esse corpo. E o silêncio é o som dos sons. Tem esse sentido da essência do todo. O som e o silêncio estão organicamente ligados à linguagem indígena. Para você ter uma idéia, a língua portuguesa reconhece cinco vogais enquanto a língua tupi-guarani tem sete, às quais chamamos de tons: a, e, i, o, u e y, que é um som mais gutural. A sétima é o silêncio.
 

ISTOÉ – Existem um canto e uma dança específicos para cada um desses tons, dessas vogais?
Kaká Werá Jecupe

 Não. A nossa expressão tem todos esses tons, como uma música. Agora, cada tom trabalha uma questão específica: y está ligado à terra, à vitalidade; u está ligado à água, à emoção; o, ao fogo, ao ânimo; a, ao coração, à qualidade de atrair e expandir, com sentimento que flui; e está ligado à expressão; i, à percepção, intuição. Cada tom tem ligações com aspectos do ser. Os guaranis dizem que nós temos um nanderekó, o nosso lugar no mundo. Esse nanderekó possui temperamentos. Esses temperamentos estão ligados a quatro elementos, que manifestam o nosso humor: terra, água, fogo e ar. São esses elementos que determinam um pouco a nossa personalidade. E existem os sons que avivam o nosso Eu interior. São como notas musicais. Na hora dos cantos, trabalham-se os aspectos que precisam ser mais apurados. Os cantos e as danças afinam, alinham o nosso estar no mundo.
 

ISTOÉ – O sonho é algo muito importante para a grande parte das culturas indígenas. O que é sonho?
Kaká Werá Jecupe

O sonho é o momento em que nós estamos despidos da estrutura racional de pensar. Nós estamos no puro estado de espírito, no awá, no ser integral. É um momento em que a gente entra em conexão com a nossa realidade mais profunda. No sonho literalmente o seu espírito viaja e pode ser direcionado para onde quiser ou para o momento que quiser. Isso exige um treinamento, como aprender a falar.
 

ISTOÉ – Quem é o responsável por esse treinamento nas tribos?
Kaká Werá Jecupe

 Normalmente um sábio. Cada mestre tem o seu modo de ensinar. Todo o sistema consiste em educar a sua mente racional para que ela perceba que não é a senhora do seu corpo, mas um instrumento do seu espírito sonhador, livre. A concepção de sonho para um índio não é a concepção de uma coisa irreal e implacável. No sonho você vai trazer a multidimensionalidade do mundo.
 

ISTOÉ – Através dos sonhos a tribo acaba recebendo sinais de como agir em determinadas situações?
Kaká Werá Jecupe

Sim. Entre alguns povos existe uma coisa que se faz pela manhã que se chama Roda do Sonho. Eles reúnem 50 pessoas, fazem uma roda e começam a contar os sonhos. E aqueles sonhos vão dando uma direção para o cotidiano da aldeia. Entre os krahôs, que são um povo muito celebrativo, tem um que é o sonhador da tribo. Se está havendo uma reunião, uma dança em volta do fogo, ele deita com a cabeça voltada para a fogueira e dorme. Depois ele narra o sonho, no dia seguinte. Os povos lidam com o sonho como um momento de liberdade do espírito, quando o espírito vê tudo por todos os ângulos.
 

ISTOÉ – A escrita foi sempre determinante no contar a história. Você se refere no seu livro a uma espécie de escrita indígena grafada nas cesteiras, nos desenhos. Essa é a grafia indígena?
Kaká Werá Jecupe

A escrita, considerada pelo ocidental, diz respeito a um tempo linear, presente, passado, futuro, a que a civilização está presa. A escrita que os povos indígenas deixaram é muito mais simbólica. Ela é inacessível a essa frequência que a civilização reconhece como escrita. Essa escrita se manifesta no corpo, através das pinturas, nas cesteiras, nas cerâmicas. Os povos indígenas deixaram essa qualidade de escrita que está afinada com a parte do ser humano que diz respeito ao seu Eu interior.