Nos Estados Unidos, cinema é um negócio levado muito a sério. A Motion Picture Association of America, conhecida como "Pequeno Departamento de Estado", foi fundada para cuidar apenas dos interesses da sua indústria cinematográfica. Um sonho há muito acalantado pelos cineastas brasileiros que sempre tropeçaram em empecilhos, sejam do governo, sejam da própria classe que em vários momentos não soube aproveitar corretamente as chances. Agora, no entanto, o momento não poderia ser mais favorável ao cinema nacional. O produtor Luiz Carlos Barreto – que estrategicamente pretende lançar Bossa nova, dirigido pelo filho Bruno Barreto, simultaneamente no Brasil, na Europa e na América Latina, em setembro – acredita que o cadáver ressuscitou e voltou a incomodar. "A chamada retomada do cinema nacional veio com força maior do que nos anos 70, quando o projeto de conquista do mercado se cumpriu plenamente. A resposta que a produção está dando hoje é mais vigorosa que na chamada época de ouro", compara o produtor, que tem no currículo O quatrilho e O que é isso, companheiro?, duas das produções brasileiras indicadas ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira.

De fato, além do interesse internacional, uma análise da crescente participação dos títulos nacionais no mercado interno revela uma performance de evidente vitalidade. Segundo a empresa de consultoria Filme B, de 1996 para cá o público anual dos filmes nacionais saltou de 1,7 milhão para 3,6 milhão. Só no primeiro semestre deste ano, o número de espectadores superou o de 1998 e três títulos – Orfeu, Simão, o fantasma trapalhão e Zoando na tv – estão entre os campeões de bilheteria junto a produções internacionais. É certo que aquela cifra está a anos luz das registradas nos Estados Unidos ou até mesmo no Brasil quando, em 1982, 80 títulos nacionais atraíram aos cinemas cerca de 46 milhões de pessoas. À época, a produção local abocanhava 35,9% do mercado. Atualmente atinge os 12%, num cenário em que apenas 7% dos filmes exibidos são brasileiros contra 72% vindos de Hollywood.

Terra devastada – Caiu a qualidade dos títulos nacionais? Melhorou o nível dos americanos? Nem uma coisa nem outra. Comparada ao cenário de terra devastada de meados desta década, a velocidade com que o setor conseguiu se recompor impressionou mesmo os mais otimistas. Além do aparecimento da Riofilme, distribuidora carioca que lança a maior parte dos títulos nacionais, as majors americanas, aos poucos, estão se tornando parceiras na produção e distribuição, o que garante maior visibilidade às obras. Orfeu, de Cacá Diegues, que em três meses de exibição esbarrou no primeiro milhão de espectadores, foi distribuído pela Warner Bros. Junto ao premiadíssimo Central do Brasil é o exemplo mais bem-sucedido das novas possibilidades de produção surgidas depois de quatro anos de vigência das leis de incentivo criadas pelo Ministério da Cultura.

É consenso no meio cinematográfico que a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual precisam ser revistas. Mas todos defendem que sem elas o volume da produção – fundamental para a atividade – nunca teria sido alavancado. Contados os filmes já lançados no primeiro semestre, com a política de subsídios do governo foram produzidos 80 filmes através de um investimento de R$ 280 milhões, que também atingiu outros 71 em fase de finalização e mais 63 no estágio de pré-produção. Segundo José Álvaro Moisés, secretário para o Desenvolvimento Audiovisual, inicialmente o governo incentivou a captação de recursos o que acabou provocando uma exaustão no mercado investidor, problema que necessita ser urgentemente contornado. "Precisamos manter o nível de produção que vinha ocorrendo para pressionar os exibidores a abrir espaço para o cinema brasileiro", afirma. Os cineastas engrossam o coro. Cacá Diegues, por exemplo, acha que neste momento a melhor arma é uma grande oferta de títulos. "Cinema se impõe pela quantidade e pela regularidade de filmes exibidos. As pessoas haviam perdido o hábito de ver trabalhos brasileiros e estão sendo reconquistadas aos poucos."

Para injetar recursos na área, visando não apenas a produção mas a comercialização e exibição dos filmes, será lançado em agosto o programa de financiamento Mais Cinema 1999/2000 envolvendo recursos de diversas áreas na ordem de R$ 80 milhões. No âmbito estadual, o Sindicato de Produtores Cinematográficos de São Paulo está articulando um apoio à produção paulista, previsto também para agosto, com envolvimento da Fiesp, da Secretaria de Estado da Cultura e do Sebrae no valor de R$ 8 milhões. O produtor Anibal Massaini Neto – atualmente mergulhado na realização do documentário O atleta do século, sobre Pelé, com orçamento de R$ 4 milhões e lançamento previsto para o ano 2000 – acha que estes programas são necessários. "A maioria dos países tem seus mecanismos de incentivo. Até nos Estados Unidos, as autoridades californianas sancionaram duas leis recentemente para impedir que a atividade cinematográfica se transfira para Nova York ou Canadá."

 

Evasão de divisas – A apreensão dos produtores e cineastas faz sentido. Em franca expansão, o negócio do cinema no Brasil deve abandonar logo o posto de nono do mundo, com uma sensível demanda por produções locais. Sabe-se, por exemplo, que dos 20 filmes mais vistos no País em todos os tempos, seis são nacionais. Se o setor tivesse mantido a participação de 35% no faturamento total, como aconteceu nos anos 80, a receita proporcionada seria da ordem de R$ 315 milhões. Trata-se de uma evasão de divisas considerável quando se leva em conta que um arrasa-quarteirão americano chega a faturar quase um quarto deste valor nas redes multiplex locais. O diretor Walter Salles (leia abaixo), que prepara o lançamento de O primeiro dia, previsto para outubro, é um dos que defendem mudanças na legislação vigente. "Pessoalmente, não me parece justo que filmes como Titanic e Star wars paguem apenas uma taxa simbólica de mil e poucos reais para entrar no mercado brasileiro", diz. "Uma taxação proporcional ao número de cópias destes filmes, por exemplo, poderia suprir um fundo de financiamento para o cinema nacional."

Este é um dos pontos-chaves do atual debate que se trava entre o governo e a classe cinematográfica, tendo em vista o aperfeiçoamento das leis existentes a partir do exemplo de outros países. Na Inglaterra, o financiamento da atividade provém das rendas de uma loteria nacional. Na Itália, subsídios para novos títulos são garantidos pela verba oriunda de 13% da bilheteria de filmes anteriores. O exemplo mais radical vem da França, onde as redes de tevê são obrigadas a investir 3% do volume de negócios na produção cinematográfica, garantindo assim 46% das verbas do setor. O que se estuda no Brasil é algo mais ameno. Uma das idéias é fazer com que as emissoras televisivas apliquem um percentual do faturamento em publicidade ou exibição de obras estrangeiras na produção de obras destinadas à sua própria programação.

 

Retrato nacional

WALTER SALLES

Existe uma vocação histórica para o cinema no Brasil. Apenas seis meses após a invenção do cinematógrafo na França, ocorrida em 1895, já eram feitas as primeiras projeções de filmes no Brasil. Poucos países no mundo demonstraram tanto interesse e tanta capacidade de assimilação da invenção dos irmãos Lumière.

A produção cinematográfica brasileira, no início do século, chegou a números impressionantes. Em 1909, foram rodados aproximadamente 100 filmes no Brasil, entre documentários, cine-jornais e filmes de ficção. De lá para cá, o cinema brasileiro só parou duas vezes: a primeira em 1914, por falta de negativo durante a Primeira Guerra, e a segunda pela ausência de caráter, nos anos Collor, quando foi promulgada uma verdadeira vendeta contra o setor cultural nacional como um todo e o cinema em particular.

A produção brasileira caiu a zero no início dos anos 90. Neste sentido, a retomada propiciada pelas leis de incentivo foi praticamente um milagre. Qual outra cinematografia conseguiu, saindo do zero, ganhar tantos festivais e prêmios internacionais, tantas indicações para a academia e, acima de tudo, reatar uma relação com seu próprio público em apenas quatro anos? É simples: nenhuma.

Central do Brasil só se tornou possível graças à participação da Riofilme e de patrocinadores que investiram no projeto através da Lei do Audiovisual. Hoje, o filme já foi visto por mais de cinco milhões de americanos, 600 mil franceses e 500 mil latino-americanos. Gerou, como várias outras produções no período, trabalho no País e divisas internacionais.

Mas há algo que vai muito além de qualquer raciocínio quantitativo. O cinema brasileiro deve existir e é necessário para propiciar um reflexo de nós mesmos, para botar na tela o nosso rosto, para focar uma geografia física e humana que nos é específica e nos distingue. Para gerar uma memória daquilo que vivemos, daquilo que fomos, um registro dos nossos sonhos, dos nossos desejos e angústias. Daqui a algumas décadas, se um jovem brasileiro quiser entender o que foi o processo de migração interna no Brasil, terá a rica possibilidade de assistir a Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos. Se quiser entender o processo de corrupção gerado pela industrialização acelerada nos anos 50 e o esfacelamento das relações afetivas dela decorrente, terá que ver São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person. Bye, bye Brasil, de Carlos Diegues, e Pixote, de Hector Babenco, lhe mostrarão muito mais o falso país do milagre nos anos 70 do que toda a produção televisiva da época. Terra em transe, de Glauber Rocha, lhe falará magistralmente do nosso caos político. E mesmo um filme não narrativo, de difícil decantação, como Limite, lhe dirá que somos capazes de criar poesia pura neste país. Porque o cinema é o retrato das nossas contradições, mas também das nossas possibilidades, da nossa capacidade inventiva.