Parece incrível, mas a pergunta instiga. Por que a Ford parece viver em dois mundos? Enquanto a segunda maior fabricante de veículos do mundo acumula dinheiro em sua casa, empilhando dólar sobre dólar, a subsidiária brasileira parece andar para trás. O contraste é gritante. Cada vez que a Ford divulga seus balanços nos Estados Unidos, como fez na semana passada, os analistas acionam suas calculadoras, refazem suas projeções e fecham previsões de que a montadora pode desbancar a líder mundial General Motors em meados de 2005 – uma posição inalterada desde que os executivos da GM constataram em meados dos anos 20 que o consumidor queria uma diversificação de cores além do preto exigido pelo fundador Henry Ford. No Brasil, a montadora aposta na polêmica fábrica da Bahia, o chamado projeto Amazon, que depende da aprovação dos incentivos fiscais da ordem de US$ 700 milhões anuais do governo para viabilizar seu futuro.

Embora os tempos não estejam nada fáceis para as montadoras, que enfrentam um mercado que encolheu 20% desde o início do ano, a Ford vem perdendo mais do que as concorrentes. Suas vendas caíram mais de 50%, a ponto de rivais recém-chegados já ameaçarem. A Renault, que abriu sua fábrica no início do ano no Paraná, vende um terço do que a Ford consegue depois de oito décadas aqui. É uma realidade totalmente oposta às operações americanas. Lá, após passar por profunda reforma, que incluiu o receituário tradicional, como fechar fábricas, demitir funcionários, desenvolver veículos carregados de alta dosagem de tecnologia e estratégias de vendas inovadoras, a Ford está a apenas 150 mil veículos da número 1 do mundo. Isso não é nada num mercado estimado em 16 milhões de veículos. Talvez, a ultrapassagem ocorra antes daquela data projetada pelos analistas. Há duas semanas, a marca lançou no mercado americano um bônus no valor de US$ 8,6 bilhões, o maior já colocado por uma corporação. O caixa da companhia, que havia sido aberto no início do ano para a aquisição por US$ 6 bilhões da divisão de carros da sueca Volvo, soma mais de US$ 25 bilhões. Com esse canhão no caixa, voltaram à tona os rumores de que a Ford estaria prestes a comprar a centenária Fiat. Resolveria muitos problemas. Ocuparia mais mercado em países europeus, como Itália e Alemanha, e se firmaria no Brasil, onde a montadora italiana incomoda a líder Volks.

Enquanto uma saída externa não chega, a montadora busca eliminar seus problemas com soluções internas. Para os executivos brasileiros da Ford, o projeto Amazon, ainda um carro compacto sigiloso, poderia dar o estímulo perdido pela montadora em quase duas décadas de acúmulos de equívocos e atrasos. Garantem que os incentivos apenas colocariam a marca em pé de igualdade com as montadoras atraídas recentemente pela guerra fiscal. O fato é que no fim dos anos 80, quando o mercado brasileiro estava no marasmo, a Ford juntou-se minoritariamente à Volkswagen para formar a Autolatina e se deu mal. Queria criar uma fortaleza capaz de evitar custos excessivos e maximizar as plantas industriais das duas companhias. Quase nenhum dos seus projetos vingou. Ao desfazer o acordo, a Ford saiu de um casamento frustrado. Quando o mercado de carros acelerou rapidamente após o Plano Real, a Ford simplesmente não tinha um produto capaz de sensibilizar o consumidor ávido por um modelo popular, mais simples e barato. Tinha apenas carros médios, como o Escort. A montadora não surfou a onda da prosperidade. Quando os modelos mais simples, como o Fiesta e o Ka, chegaram ao mercado, o que não havia mais era consumidor. Os executivos mais antigos assumem um mea-culpa. "Não deu para fazer tudo ao mesmo tempo", diz um deles.

O Plano Real fazia água com a primeira crise, a da Ásia em 1997. Todas as montadoras perderam, mas a Ford perdeu mais com a chegada das novas concorrentes. "Isso desestimulou a rede de distribuidores", diz um deles, que prefere permanecer no anonimato. A rede, que havia chegado a 400 pontos em todo o País, caiu para menos de 300 revendas. "Os problemas da Ford no Brasil não são intratáveis", disse na semana passada o presidente mundial, Jacques Nasser. "Mas vão exigir criatividade e engenhosidade de nossa parte, especialmente nos custos." No primeiro semestre, as operações da América do Sul deram um prejuízo de US$ 285 milhões à matriz, devido principalmente ao desempenho brasileiro. No início do mês, a montadora trocou de presidente, nomeando um executivo fora do setor, saído do grupo Itamaraty. Antônio Maciel Neto, 41 anos, foi escolhido pelo chefão Nasser. Enquanto a polêmica da fábrica na Bahia não se encerra, ele prefere manter-se quieto. "Não posso falar agora", afirmou a ISTOÉ na terça-feira 13, antes de embarcar para Dearborn, o Q.G. da Ford nos Estados Unidos, para uma reunião com a cúpula mundial. Foi tratar dos problemas da subsidiária brasileira. Na volta, esperam-se soluções para transferir o sucesso global para cá.