O exército de zumbis está comemorando. Depois de Belém e do Rio de Janeiro, chegou a vez de São Paulo enfiar a viola no saco mais cedo e se render à lei que proíbe o funcionamento de bares madrugada a dentro. Enfim a garantia de que os vizinhos da farra possam dormir tranquilos. Os points do badalado bairro carioca Baixo Gávea desde janeiro baixam as portas à uma da manhã. A decisão rendeu muita polêmica, ainda mais em uma cidade em que grandes canções foram feitas regadas a muito chope e, de preferência, no limiar do nascer do sol. "Para o morador melhorou muito, mas não se pode asfixiar a cidade. Toda capital tem seu bairro boêmio", contemporiza Ricardo de Carvalho Duarte, o poeta Chacal, morador do bairro. Conhecida pela agitação e duração de sua noite, São Paulo está seguindo o exemplo carioca. Na terça-feira 13, o prefeito Celso Pitta sancionou uma lei que proíbe o funcionamento depois da uma hora dos bares que não tenham isolamento acústico, estacionamento e segurança. Resta saber se a lei vai realmente vingar.

O vendedor Fábio Santucci, 49 anos, que mora há 20 em cima do Snack Bar Canarinho, um botequim da Vila Madalena, bairro paulistano onde a noite é sempre uma criança, acredita que seu carma vai chegar ao fim. "Essa lei vai pegar porque tem gente demais enfrentando esse problema", diz. "Lá em casa nem minha mulher nem minhas duas filhas escutam o que o outro fala." Três dos seis apartamentos do seu prédio estão vazios por causa da quizumba feita pelos frequentadores de quatro bares vizinhos. No Canarinho, o clima é de incerteza. Se a lei pegar, o estabelecimento, de 26 anos, fecha. "A nossa clientela vem sempre entre a meia-noite e cinco da manhã, mas a gente não tem dinheiro para uma reforma de adaptação às regras", reclama o gerente, Pedro Barreto.

Mas não é só com uma cerveja na mão e excesso de alegria que a turma do barulho ataca. Tem gente que mora em bairros residenciais, sem bares por perto, e vive um inferno por causa de outros ruídos. É o caso do empresário Caio Alfaya Júnior. Na rua tranquila onde mora, em São Paulo, o estrondo vem do céu. "De segunda a sexta, a partir das 6h30, passam de 10 a 15 helicópteros em cima da minha casa", diz o empresário, que trabalha com eventos e geralmente vai dormir tarde da noite. Até o fim do ano, ele quer alugar outra casa longe dali. Noites maldormidas deixam a pessoa mais cansada e leva ao stress. Se o barulho for bem alto, cresce o risco de problemas cardíacos e distúrbios auditivos. Mas a consequência mais imediata é uma profunda irritação.

O produtor de vídeo paulista Saul Nahmias viu aflorar seu instinto assassino. "Tenho vontade de sair com uma bazuca e explodir o cara que vende fruta na minha rua com um megafone", confessa. "É todo dia ‘olha a fruta, olha a fruta’, até no domingo", conta. Ele chegou a transferir sua cama para a sala, o ambiente mais protegido da casa, onde dormiu por dois anos. Nesse martírio seu colega de apartamento, o produtor Momi Oliveira, ressalta ainda a caravana diária de caminhões de gás. "Já vi uma sinfonia com três caminhões ao mesmo tempo, só faltava o maestro", reclama Oliveira, que, num delírio de raiva, pensou fazer um videominuto em que o mundo acabava e sobravam apenas caminhões de gás. Atualmente, eles usam plugues de ouvido japoneses, que reduzem 70% do barulho.

Para a astróloga Paula Falcão não falta nem o maestro – mais, precisamente, um mestre de bateria. Ela mora perto do barracão de uma escola de samba em São Paulo. Enquanto a cuíca ronca, ela fica acordada. "Antes do Carnaval, eles ensaiam a noite toda. Eu até gosto de samba, mas são três meses seguidos", conta Paula, que, nos dias de maior desespero, pega o carro e dirige pela cidade até as três da matina para acalmar. No bairro ao lado, apesar do latido noturno de um cachorro e do canto incomum de um pássaro que às quatro da manhã se transforma em uma espécie de Janis Joplin das aves, o problema mesmo, para a professora aposentada Amélia Guimaro, é durante o dia. Os prédios vizinhos trocaram as vassouras por máquinas de jato d’água. "É de enlouquecer. No prédio que tem a máquina mais barulhenta, eles ficam com ela ligada a manhã e a tarde toda", diz a professora. "Quem faz barulho quer que os outros se danem. Silêncio também depende de educação", ensina.

Colaborou Celina Côrtes (RJ)