Vista do alto, São Joaquim é uma simpática cidade derramada entre as colinas cor de cobre do planalto do sul de Santa Catarina. Fundado em 1887 por portugueses vindos do interior paulista, o lugarejo teve suas ruas construídas em paralelepípedos de pedras basaltos, as mesmas que erguem a igreja Matriz, na praça central, e foi povoado ao longo dos anos por imigrantes italianos, alemães, negros e, mais recentemente, japoneses. Os orientais, e boa parte dos atuais 22 mil habitantes da cidade, trabalham na lavoura da maçã. Ao redor de São Joaquim, há cerca de 3,5 mil hectares cultivados com a fruta, de onde saem anualmente 75 mil toneladas. Essa produção corresponde a mais de 10% do total nacional e sustenta a economia do município. Não é a excelência e o sabor das fujis e galas, contudo, que fornecem à cidade sua principal característica. Acontece que São Joaquim é a cidade mais fria no Brasil e, supra-sumo do exotismo tupiniquim, é onde mais neva em todo o território nacional. O choque térmico-cultural entre o clima europeu e o povo brasileiro produz, além de premiadas maçãs, um cotidiano peculiar.

Neste Brasil subzero, o meteorologista da cidade é figura tão respeitada quanto o prefeito e o padre. Suas informações diárias são propagadas e comentadas nas esquinas da cidade como fofocas quentíssimas. Mas, quando ele anunciou, em 17 de abril deste ano, que haveria uma nevasca extemporânea, poucos acreditaram, pois São Joaquim costuma ficar branca de neve apenas três vezes ao ano, sempre no inverno. Ele estava certo, como também nas outras três vezes em que choveram flocos brancos este ano. "Naqueles dias, a temperatura chegou a -1ºC, mas a sensação térmica, que é a tempeatura que sentimos, chegou a -22ºC. Avisei para ninguém sair de casa, ou correria o risco de queimar os lábios", lembra Ronaldo Coutinho, 35 anos, o homem do tempo de São Joaquim. Seus alertas, feitos por rádio ao longo do dia, servem também para os agricultores se precaverem das chuvas, geadas e nevascas, que podem destruir as plantações. Não que o frio seja novidade. Localizada a 1.360 metros do nível do mar, na fronteira com o Rio Grande do Sul e a apenas 70 quilômetros do litoral, São Joaquim agrupa condições de altitude, latitude e umidade únicas no País, capazes de gerar uma temperatura média de 15ºC ao longo do ano, que no inverno cai para 5ºC. Mas Coutinho explica que 1999 está sendo especialmente frio. "Isso se deve em parte ao fenômeno La Niña, que está fazendo com que as massas de ar vindas da Antártida, em vez de se deslocarem pelo oceano, entrem no continente e no interior do Estado", diz o meteorologista.

 

Sem calefação Graças a "La Niña", a menina Louise Cecília Pereira, sete anos, tem tremelicado mais do que nunca. Como a maioria dos moradores, ela não tem um sistema de calefação, comum nas casas do Hemisfério Norte, para aquecê-la. Sua única proteção contra o frio são seus cobertores. "Durmo de pijama e com cinco cobertas, mas às vezes dá vontade de pular para a cama da minha mãe", diz a garota. "Não temos lareira nem dinheiro para comprar um aquecedor. O jeito é se agasalhar", afirma sua mãe, Elenita, que trabalha como faxineira do Caic, um dos cinco colégios públicos da cidade, onde Louise estuda. Para ir às aulas, a garota acorda às oito da manhã e caminha quase um quilômetro. "No frio tenho preguiça, mas minha mãe puxa as cobertas e eu me espreguiço. Legal é quando neva, a gente brinca de fazer bola e jogar nas janelas e sair correndo. Também é bom que não tem aula porque a escola fecha." O colégio é feito de estrutura de cimento, sem alvenaria e sem forro no teto. "Parece prédio para o clima do Nordeste", reclama Estela Pereira, coordenadora do Caic. "Durante o inverno, colocamos aquecedores nas salas e recebemos doações de roupas porque a maioria dos alunos é de família humilde. Mesmo assim as crianças não se agasalham e muitas chegam aqui ‘encarrangadas’. É comum a gente colocá-las em frente ao aquecedor e dar uma xícara de chá quente antes das aulas", descreve Estela. Em tempo, "encarrangado" é o mesmo que congelado.

Turismo a lenha O clima de Primeiro Mundo não faz de São Joaquim um município desenvolvido. Depois da pecuária e do ciclo da madeira, os fazendeiros não renovaram suas atividades e a economia estagnou. Para piorar, a cidade não criou uma infra-estrutura para explorar o turismo de inverno. "Estamos muito atrás de cidades como Gramado e Canela, no Rio Grande do Sul, que exploram o clima frio de forma a atrair pessoas de fora", diz o prefeito João Carlos Bagani. Em São Joaquim há apenas seis hotéis e pousadas para receber visitantes. É o mesmo número de restaurantes disponíveis – muito pouco para oferecer os pratos típicos da região, como o frescal com moranga (carne salgada e curtida na sombra acompanhada de abóbora cozida com açúcar), e menos ainda para abrigar os quase mil turistas que sobem a serra nos fins de semana dos meses invernais. A mais perfeita produção do clima da cidade é a maçã. "Quanto mais frio, melhor a fruta", diz o agricultor Élson Outuki, 55 anos. "Mas para suportar, japonês tem ofurô e dorme com futon", diz ele.

Muitos moradores aprovam o clima quase polar da cidade. "É bom porque atrai turista", se diverte a estudante Caroline Vitória, 18 anos. "Fora que é o melhor clima para namorar, para se aquecer junto", completa a amiga Daniela Cardoso, 17 anos. As gurias afirmam que o melhor programa em São Joaquim é ficar em casa. "A gente se reúne para ver um filme, um jogo de futebol, ao lado da lareira, e tomar vinho e quentão. Mesmo porque, à noite, tudo fecha", diz Caroline. Se durante o dia as frentes de combate ao frio estão na rua principal da cidade, onde de um lado os homens adultos bebem café e pinga e, do outro, a padaria serve chocolate quente à juventude local, depois que o sol se põe o lugar mais frequentado na friorenta cidade é a cozinha. Em cada casa, é lá que fica a televisão e, às vezes, até um sofá. Isso porque é lá também que fica o principal objeto do estilo de vida joaquinense: o fogão a lenha. "Tem de ficar perto do fogo, cozinhar uns pinhões. A gente só vai para o resto da casa para dormir e tomar banho", afirma o construtor Rodinei Baesso, 46 anos, que junto com a mulher e duas filhas mora numa casa de madeira típica da arquitetura regional. Pela sua profissão, Rodinei sabe bem os problemas que o frio traz. "No inverno me canso de consertar registros e canos d’água que congelam e estouram. Quando está frio mesmo, temos de buscar a água direto na caixa porque ela não desce pelas torneiras", diz o construtor, que dá a receita: "Para viver aqui, não podem faltar duas coisas: lenha na casa e roupa no corpo." Sua mulher, Ivonete, dá outra dica. "Mando meu marido para a cama antes, para ir esquentando."