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Um dos musicais mais assistidos do planeta tem como personagem principal Erik, fantasma que esconde o rosto deformado com uma máscara para aterrorizar a Ópera de Paris. O que de mais próximo temos da fabulosa casa de espetáculos que serve de cenário para essa história, o nosso centenário Teatro Municipal de São Paulo, vive hoje passagens semelhantes às do texto escrito por Gaston Leroux em 1910.

Tudo começou em agosto, no fim de semana de estreia de “Aida”, espetáculo que inaugurou a volta do maestro John Neschling à direção artística do teatro. A montagem estava com a casa lotada na apresentação vespertina do domingo. Mas um dos ápices da narrativa de Verdi dependia de um elevador cênico do palco – que não funcionou. A apresentação aconteceu com a lacuna cênica, que parte da plateia nem percebeu.

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BOM FILHO
John Neschling, diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo. Terceira
passagem do maestro pela instituição que ajudou a consolidar, nunca livre de críticas

Algumas semanas depois, a maldição atingiu outra montagem, “Don Giovanni”, de Mozart. Dessa vez, o susto veio de uma súbita queda de luz, entre a terceira e a quarta récita. Na mesma tarde, o teatro apresentou uma denúncia no 2° Distrito Policial do Bom Retiro, no centro de São Paulo. No dia seguinte, a polícia científica visitou as coxias do teatro. Um laudo técnico deve ficar pronto em até três meses. “Todos os testes feitos nas mesas de luz nos dias que se passaram mostram que o equipamento conserva um funcionamento impecável”, afirma uma fonte ligada à instituição municipal. O principal temor da casa, porém, é que o parecer da polícia confirme se tratar de sabotagem. E sabotagem realizada por entes do mundo dos vivos, mais precisamente da equipe do próprio Teatro Municipal, que era exatamente a mesma nas duas apresentações, ambas realizadas no horário vespertino do domingo.

Explica-se: a volta de John Neschling no início deste ano para a direção do teatro tem incomodado funcionários fixos e temporários da casa. As críticas abertas acusam o maestro de privilegiar contratações estrangeiras às nacionais. “Minha história profissional é de defesa do artista brasileiro. Você já deu uma olhada na programação de 2014? Há apenas um nome nacional escalado”, disse por telefone à ISTOÉ André Heller-Lopes, que teve um trabalho cancelado pelo diretor artístico. “O ‘Ouro do Reno’, minha montagem de Wagner, foi cancelada exatamente na sequência de um post no Facebook sobre artistas ‘genéricos’ ocupando o lugar de cantores brasileiros com muito mais talento e expressão. Mas nem era do Municipal que eu estava falando”, disse ele. Segundo dados da administração do teatro, 61% das contratações deste ano foram de artistas nacionais, contra 39% estrangeiros. No ano passado, a proporção era de 83% para 17%.

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COMEÇO DIFÍCIL
Vista do palco onde ocorreram as falhas durante as
óperas de abertura da temporada da nova gestão

“Eu não sei nada sobre essa história de sabotagem. Estava viajando quando os incidentes aconteceram. É um palco de mais de 100 anos, eu mesmo já tive problemas com esse elevador em 2007, durante um ensaio”, complementa ele. Para o centenário, em 2011, o Teatro Municipal passou por uma reforma que utilizou R$ 28,3 milhões em recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Prefeitura de São Paulo. Além de vitrais, portas, cortinas, poltronas e piso, foram refeitos ou trocados todos os aparatos de som e de iluminação.

Mas as piores afrontas, como a da personagem que não podia mostrar o rosto na ópera francesa, foram feitas em anonimato. Simultaneamente aos primeiros espetáculos da temporada lírica, perfis falsos no Facebook passaram a desferir ataques à Neschling e à administração do Municipal. A Delegacia de Crimes Digitais investiga as publicações. “Sem o laudo técnico é impossível dizer se houve falha técnica ou manobra intencional”, disse à ISTOÉ a delegada Giovanna Clemente, responsável pelo caso. A hipótese de sabotagem, no entanto, não foi descartada. “Há um problema sério de acesso à parte técnica do prédio”. A Guarda Civil Metropolitana agora permanece no teatro durante as apresentações Quatro funcionários do teatro foram ouvidos até agora.

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Um dos perfis falsos (único ativo até o fechamento desta edição; os outros foram tirados do ar após o início das investigações), sob o nome de Bidu Costa (Bidu Sayão Ressuscitada), comentou cada um dos incidentes. No dia seguinte à última falta de luz, publicou: “Faltou energia de novo! Claro que agora o ilustre e paranoico diretor artístico quer jogar a culpa em mim, inventando uma estorinha de sabotagem tupiniquim. Mas pode ficar tranquilo, Johnny. Não fui eu, não. Quem precisa recorrer a atos criminosos, como sabotagem, quando a incompetência pura reina no teatro e eles se sabotam sozinhos?”

Procurado pela reportagem, John Neschling preferiu não comentar o caso enquanto as investigações estiverem ocorrendo. José Luiz Herencia, presidente da Fundação Teatro Municipal de São Paulo, se limitou a dizer que as questões técnicas e políticas da fundação e do teatro estão recebendo a atenção devida. “Mas não podemos esquecer que a missão da casa é de natureza cultural e que o público continuará dispondo do conteúdo anunciado pela programação.” O “Ouro do Reno”, em vez de ópera, será apresentado como concerto (sem cenários) e a direção musical de Luiz Fernando Malheiro será mantida. “Mas muita gente está devolvendo o ingresso”, diz Heller-Lopes. Segundo o teatro, até agora, quatro pessoas entraram em contato para cancelar a compra e, fora essas quatro, todas as cadeiras para o espetáculo de novembro estão vendidas. O fantasma de Leroux gostava de casa cheia. Mas o nosso parece avesso à nova frequência das coxias, a Guarda Civil Metropolitana.