Quando Carlos Saúl Menem tomou posse pela primeira vez como presidente da Argentina, em 8 de julho de 1989, a maioria dos analistas previu a ressurreição da velha política populista do general Juan Domingo Perón (1895-1974). Até as espalhafatosas suíças e melenas do novo presidente pareciam denunciar a opção preferencial de Menem por idéias arcaicas. Poucas previsões se revelariam tão furadas em tão pouco tempo. Com o país entrando em entropia por uma gravíssima crise econômica, o peronista Menem jogou na lata de lixo da história a cartilha do velho general para trocá-la pelo receituário neoliberal de Wall Street com a mesma facilidade com que, muitos anos antes, abandonara o islamismo para converter-se ao catolicismo. Uma década depois, essa opção fez da Argentina um país completamente distinto daquele que Menem recebeu de Raúl Alfonsín. Há dez anos, uma astronômica inflação de quase 5.000% ameaçava mergulhar a sociedade argentina em tamanho caos que Alfonsín foi obrigado a passar a faixa a Menem seis meses antes do prazo. Sob a batuta de Domingo Cavallo, o país estabeleceu a paridade do peso com o dólar, privatizou tudo o que foi possível e fortaleceu os laços com o Mercosul. O resultado foi o fim do pesadelo inflacionário acompanhado por um espantoso crescimento econômico – mais de 50% entre 1991 e 1998. A estabilização, contudo, não tardou a revelar uma face perversa. No mesmo período em que a economia se expandiu, o desemprego quase dobrou e deve chegar a 15% este ano. A desigualdade já atinge níveis brasileiros. O número de pobres passou de 9,3 milhões em 1994 para 13,4 milhões em 1998, cerca de 36% da população. E esse esgarçamento social, já grave quando o país crescia, tende a se tornar dramático com a recessão que se anuncia pela queda das exportações ao Brasil depois da desvalorização do real. "Menem tomou como modelos Ronald Reagan e Margaret Thatcher e adotou a idéia de que a ausência de interesse social não leva a um alto custo político", define o analista político Oscar Raúl Cardoso. "O governo Menem trocou inflação por estabilidade e concentração da riqueza. Não houve uma política de desenvolvimento integral, e os grandes benefícios foram repartidos entre poucos. Hoje, 45% das crianças de até 14 anos vivem abaixo da linha de pobreza", resumiu o analista econômico Roberto Lavagna. Somente essa penúria social tornou inviável o projeto de "re-reeleição" de Menem este ano. Em 1994, uma reforma na Constituição permitiu a reeleição do presidente por uma vez. Uma leitura enviezada da Carta poderia ocorrer tranquilamente se a crise não estivesse tão brava.

No plano político, Menem conseguiu neutralizar a caserna, o principal foco de ameaça à democracia argentina. Entre 1987 e 1990, ocorreram quatro quarteladas em protesto aos processos e prisões de oficiais acusados de violações de direitos humanos durante a ditadura (1976-1983). O presidente indultou os comandantes das Juntas Militares e acabou com os processos. A crise orçamentária argentina se encarregou de reduzir drasticamente os apetites dos fardados. A tal ponto que, na semana passada, as Forças Armadas anunciaram que, por razões econômicas, estavam dando um mês de férias aos seus 70 mil efetivos. Mas talvez a face menos visível e mais degradante do menemismo é a verdadeira Cosa Nostra em que se transformou o Estado argentino nesses últimos anos. São mais de 100 casos de corrupção, denúncias de ligações com o narcotráfico e impunidade que envolvem funcionários, parentes e amigos do presidente. "Em dois governos, Menem demonstrou não ter nenhum tipo de limites nem regras morais. Ele nunca esteve interessado no caminho que devia percorrer para alcançar seus objetivos e, dentro dessa amoralidade, entram a família, os amigos e até mesmo o próprio partido", define a jornalista Olga Wornat, que está escrevendo uma biografia do presidente argentino.

 

Estabilidade e realinhamento Foi a partir de 1991 que o governo alcançou sua principal vitória: a derrota da hiperinflação através do Plano de Convertibilidade do então ministro da Economia Domingo Cavallo. Este plano fixou, através de emenda constitucional, o valor do peso argentino em um dólar americano. Cavallo levou adiante a reforma do Estado com uma política ultraliberal, necessária para que o governo ganhasse credibilidade diante dos poderosos grupos econômicos estrangeiros, que começavam a olhar para a Argentina como um potencial mercado para futuros investimentos. Ele cumpriu seu objetivo: a convertibilidade acabou com a inflação e o ousado processo de privatização atraiu capitais americanos, italianos, franceses e espanhóis, além dos nacionais, gerando US$ 7,6 bilhões. O complemento dessa abertura foi a redefinição da política externa argentina para uma posição abertamente pró-americana – as famosas "relações carnais" do chanceler Guido Di Tella. O último capítulo desse realinhamento foi escrito na quinta-feira 8, quando o presidente anunciou a intenção da Argentina de integrar-se à Otan. Se aceita a proposta, a aliança militar ocidental deveria mudar seu nome para Organização do Tratado do Atlântico Norte e Sul. Mas nem o realinhamento, nem a enxurrada de investimentos internacionais, nem o sucesso na batalha contra a inflação impediram que o governo Menem fosse palco de uma avalanche de denúncias de corrupção. Segundo o analista político Rosendo Fraga, "a corrupção, juntamente com o desemprego, é uma das principais dívidas de Menem para com a sociedade".

O primeiro escândalo estourou em 1990. Foi o chamado "Swiftgate", no qual seu então cunhado Emir Yoma, irmão de sua ex-mulher Zulema Yoma, foi acusado de cobrar comissões à empresa frigorífica americana Swift-Armour para a sua instalação na Argentina. Foi o próprio embaixador americano da época, Terence Todman quem fez a denúncia e que acabou provocando a saída de Emir do governo. Em 1991 outra irmã da primeira-dama, Amira Yoma, assessora de Menem, foi acusada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón – o mesmo que prendeu o general Augusto Pinochet – por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, no caso conhecido como "Yomagate".

Em 1995, o governo argentino viu-se às voltas com a acusação de vender armas ilegalmente à Croácia e ao Equador. No caso do Equador, o escândalo era maior porque a Argentina fazia parte do grupo de países que participavam das negociações de paz entre aquele país e o Peru. Os principais responsáveis pelo deslize foram dois ministros da Defesa, Erman González, amigo do presidente, e Oscar Camillión, além do chanceler Guido Di Tella.

Um dos casos mais misteriosos foi a morte do filho do presidente, Carlos Menem Júnior, o Carlitos, num suspeito acidente de helicóptero em março de 1995. A ex-primeira-dama Zulema acusou a "máfia palaciana" que cercava o presidente de ter tramado a morte do rapaz para que ele não revelasse segredos comprometedores. Menem jogou ainda mais água no moinho da dúvida, já que preferiu não investigar e continuar governando como se nada tivesse acontecido.

As relações perigosas de Menem incluíam o obscuro empresário Alfredo Yabrán. A primeira vez que os argentinos ouviram falar dele foi em 1996 quando o ex-ministro Cavallo o acusou de controlar a máfia dos correios e da alfândega dos aeroportos. Mas o caldo realmente entornou no ano seguinte, quando o jornalista José Luis Cabezas, autor da primeira foto de Yabrán, foi morto por capangas a mando do empresário. Em 20 de maio de 1998, Yabrán foi encontrado morto numa casa na Província de Entre Rios. Um suicídio suspeito, no melhor estilo mafioso.

Talvez a melhor definição do decênio menemista tenha sido feita pelo articulista Julio Nudler, no jornal Página 12 de quinta-feira 8: "Ao terminar esta década diferente, a Argentina tem os shoppings, as autoestradas, os condomínios de luxo, serviços mil e obsessões virtuais às quais só podia sonhar ao iniciá-la. Mas não é um país feliz: não sabe qual é seu papel nesta comédia nem quantos atores ficarão para sempre fora do elenco." Menem, contudo, não se dá por vencido. Na segunda-feira 5, ele insinuou que voltaria ao poder em 2003. Faz lembrar a definição do escritor Jorge Luis Borges sobre os peronistas: "Não são bons, não são ruins, são simplesmente incorrigíveis".